2019 foi um ano interessante. Não só foi o grande encarceramento de uma década, mas também foi uma bela sina para amantes de cinema e demais outros meios de entretenimento; tivemos neste ano o lançamento de pequenas Obras-Primas subestimadas como 'Rocketman' e 'Ártico', tivemos o segundo capítulo da promissora carreira dos três cineastas mais interessantes do cinema de horror atual, com os novos filmes de Robert Eggers, Jordan Peele e Ari Aster; filmes que fizeram muito dinheiro na bilheteria deixando um mar de polêmica no processo como 'The Lion King' e 'Joker', teve final divisor de 'Game of Thrones', foi o ano de lançamento do primeiro longa-metragem não estadunidense à ganhar o Oscar de Melhor Filme; o ano em que o Adam Sandler quase foi indicado ao Oscar de Melhor Ator; foi tanta coisa à acontecer, que eu julgo que até mesmo filmes objetivamente ruins daquele ano foram no mínimo obras interessantes de se discutir.
Mas aí vem, 'The Irishman', o grande lançamento de Martin Scorsese. e também o que eu acredito ser o grande feito cinematográfico daquele ano, e vou além ao afirmar que este filme já é um verdadeiro clássico moderno... mas vamos por partes. Baseado no livro não-fictício 'I Heard You Paint Houses', publicado pelo advogado e investigador Charlie Brandt em 2003, o roteiro de Steven Zaillian se concentra em Frank Sheeran (Robert De Niro), um condecorado veterano da Segunda Guerra que passou a trabalhar como caminhoneiro nos anos seguintes. Tudo muda, no entanto, quando ele conhece o mafioso Russell Bufalino (Joe Pesci), de quem se torna colega íntimo e que eventualmente o transforma em cobrador/assassino da Máfia nova-iorquina. Mas não é só: Bufalino, por sua vez, apresenta Frank ao renomado Jimmy Hoffa (Al Pacino em sua primeira parceria com Scorsese, curioso isso ter demorado mais de 40 anos para acontecer), presidente do sindicato nacional de caminhoneiros, os Teamsters. Aproximando-se cada vez mais do protagonista, Hoffa o eleva a líder sindical – e seu destino… bem, quem conhece a história real talvez já tenha uma noção, mas mesmo assim vou manter em sigilo aqui.
A ideia de envelhecimento é algo muito complicado, pois no fundo todos sabemos que isso chegará à nós um dia, aí nós perguntamos como será que isso deve ser lidado pra um autor como Scorsese, que já está na casa dos 70, o cineasta sempre foi conhecido por sua versatilidade, ele já dirigiu grandes estudos de personagens, histórias de gângster, biografias, horror psicológico e até histórias infantis sobre a mais pura Inocência. Mas acima de tudo, ele sempre foi marcado pela sua clássica narrativa, onde o vemos contar a ascensão de homens fortes, onde acompanhamos à sua trajetória seguindo por uma narração em primeira pessoa, que basicamente serve para romantiza a vida destes homens, até que Scorsese apresentar a realidade dua e crua onde vemos queda destas personagens, com o longa encerrando com o nosso protagonista carismático literalmente terminando na merda. Uma narrativa bastante atraente para os padrões dos anos 70-80, e que hoje percebe-se como sendo uma legítima desconstrução do conseito de patriarcado e masculinidade tóxica por parte de Scorsese.
Se em 'The Wolf of Wall Street ' Scorsese subverte este conceito a partir da sátira áspera e do exagero, em 'The Irishman' isso é desconstruido à partir da mais pura e alto-reavaliação, pois o longa é em essência uma grande discussão sobre o seu próprio autor, os seus vícios, desgastes, e méritos, e principalmente o envelhecimento; foi-se todo aquele sarcasmo e entusiasmo juvenil de 'Os Bons Companheiros', e chega uma áurea melancólica, dentro de uma história sobre o que é envelhecer e encarar os seus maiores arrependimentos, se uma hora a violência era longa, bruta e o prato principal, hoje ela é rápida, esguia e vista por relance, se uma hora o suposto final trágico de sua protagonista era o ponto de encerramento, hoje é uma abertura para um epílogo, mostrando o que após o fundo do poço vem a vida, pois as vezes, a solidão pode ser pior que a morte.
Ao reavaliar o conseito de fazer uma Obra-Prima, Martin Scorsese faz uma Obra-Prima. Como uma linda música de final de ano. Isso meus amigos, é apenas cinema, sem autoindulgencias, sem parques de diversão, sem discursos vazios proporcionados a partir de uma visão adolescente do que é uma obra intelectual. Apenas cinema em sua pura essência. E é por este e muitos outros motivos que 'The Irishman' foi o filme que fechou o cinema dos anos 2010 com chave de ouro.