Qualquer momento isolado de O Irlandês entraria fácil para uma lista de grandes momentos do cinema deste ano. Não é nenhum exagero pensar nisso, posso dizer tranquilamente. O que poderia ser um exercício cansativo e expositivo pelas suas 3 horas e 29 minutos de duração torna-se na mão de Scorsese uma sucessão cada vez mais envolvente e sufocante de uma história que muitos não conhecem ou sabem superficialmente atualmente – me encontro nesta última classificação – e, nem por isso, em nenhum momento, fiquei me sentindo perdido ou confundindo seus inúmeros personagens que entram e saem de tela – além dessa e de muitas outras coerências narrativas, o cinema do mestre Scorsese consegue tornam está trama em algo absolutamente encantador, sem soar confuso em nenhum (absolutamente nenhum) momento.
É possível dizer que O Irlandês é a mistura de quase tudo que Martin fez no cinema – aqui você notará a critica social revoltosa de Taxi Driver, o humor absurdo de O Rei da Comédia, a violência de Cassino e o clima de intriga mafiosa de Os Bons Companheiros – alias, esse último sempre deixou o diretor com fama de ser “especialista em filmes de mafiosos” – o que é quase um insulto, afinal, ele é um cineasta tão criativo que, realmente, uma definição dessa não passaria de uma mera e injusta limitação. Seu novo trabalho é uma soma de outros elementos de filmes passados, mas, revelando nuances e detalhes que, sem dúvida alguma, surpreenderiam qualquer fã do diretor – e, evidentemente, qualquer cinéfilo.
Produzido pela Netflix, O Irlandês é um drama histórico. É claro que não é o primeiro filme a lidar com a história do polêmico Jimmy Hoffa – Danny De Vito dirigiu em 1992 seu Hoffa, estrelado por Jack Nicholson – mas, agora, Scorsese tem outro foco – Se passando do fim da década de 50 até meados dos anos 80 e 90, a história é contada pelo ponto de vista de Frank Sheeran (De Niro), o irlandês do titulo, contando sua trajetória de motorista de caminhão de frigoríficos e de assassino de aluguel para máfia, em especial para o mafioso Russell (Pesci), até virar principal companheiro de Jimmy Hoffa (Pacino), o famoso sindicalista e, também, se tornar um líder sindical influente – em meio a isso, deixando deteriorada, sem ele mesmo notar, a vida de suas filhas, em especial a pequena Peggy (vivida na fase infantil por Lucy Gallina e na adulta por Anna Paquin).
A ironia e deboche de Scorsese para lidar com algumas “tiradas” é algo que funciona inacreditavelmente bem – o espectador se pega rindo logo de cara ao entender o porque de chamarem Frank de “pintor de casas” – alias, o senso de humor nos diálogos do preciso e perfeito roteiro de Steve Zaillian é algo único para o filme – seja por brincar com estereótipos de filmes de mafiosos (“todos se chamam Tony” é genial) ou por trazer uma naturalidade inacreditável em inúmeros momentos – e, acredite, cada cena, dialogo ou passagem tem um motivo para estar ali, seja para você se situar no que acontece na trama ou para entender o que se passa com os personagens – o simples fato de dois atores ficarem se questionando quanto a um peixe ter sido levado em um carro ou a demora em preparar uma salada tem seus significados e funções.
Isso se estende para um elenco realmente estelar: com coadjuvantes perfeitos como Harvey Keitel e Stephen Graham como o nervoso Tony Pro, o filme tem a volta da parceria de Joe Pesci com o diretor, fazendo o ator tornar seu Russell uma criatura abominável mas absurdamente simpática ao mesmo tempo – creio que Pesci seja um especialista nisso – dando uma multifacetada que condiz com a ambiguidade moral dos bastidores tenebrosos da máfia, envolvidos aos escândalos políticos da época; já Al Pacino compõe com sua conhecida entrega seu Jimmy Hoffa, um homem destemido e determinado, que, junto de sua construção no roteiro, reflete perfeitamente os interesses e temperamento deste – obviamente, é proposital como a vontade em ajudar os trabalhadores vai desaparecendo e o seu orgulho se sobressai, se importando apenas com a liderança do sindicato do que com o real bem estar dos caminhoneiros – o retrato que o filme faz disso é tão preciso que tem-se a impressão de que a trama se passa nos dias de hoje, tamanha a agilidade em apresentar fatos históricos em momentos oportunos para a narrativa – como a tentativa de invasão a Cuba e o assassinato de Kennedy, por exemplo. Além disso, torna-se autentica a suposta relação de amizade entre Russell, Hoffa e Frank – o que deixa o fim trágico ainda mais amargo – mas, como disse antes, O Irlandês não é somente sobre Jimmy Hoffa.
Nesse sentido, a atuação de Robert De Niro é realmente um espetáculo a parte – e como fico feliz em saber que o veterano parceiro de Scorsese em Taxi Driver, Touro Indomável e outras pérolas está envolvido em dois grandes filmes este ano (em Coringa e aqui) – contando com efeitos digitais e de maquiagem bastante convincentes para parecer mais jovem inicialmente (assim como o personagem de Pesci), seu Frank Sheeran é, desde já, uma de suas melhores composições – o olhar torto e frio dele é algo que dita muito de seu comportamento – ele demora a demonstrar sentimentos, possui um senso de moralidade rígido – que, literalmente, leva até o fim, digamos assim. Uma atuação realmente difícil – afinal, se o personagem é alguém “fechado” fica mais difícil ainda entende-lo – tornando sua narração em off realmente necessária – e está forma de entender o personagem é algo que mais uma vez precisamos aplaudir Scorsese – talvez seja a grande chave do filme – a Peggy de Anna Paquin.
A atriz comprova seu talento em um papel pequeno (ao menos em tempo de tela), mas que preenche perfeitamente o significado de vida de Sheeran – Peggy é a única pessoa que realmente enxerga o pai completamente – e por ser uma pessoa fechada também – mas, ao contrário do pai, que mesmo sem expressar o que sente, é quase um falastrão – a moça é instrospectiva, desde sua infância (bem vivida pela jovem Lucy Gallina) até sua vida adulta – ela é o único elo de ligação (talvez) com a humanidade dentro de Frank – o que faz com que o personagem de De Niro não seja encarado por nós como um monstro – a importância da atuação de Anna é enorme, porque além de ajudar a demonstrar outras facetas de seu pai, ela ainda serve para mostrar como a falta de comunicação e afeição com Frank tornou sua vida mais infeliz e sombria, também por saber que seu pai é um criminoso – isso é suficiente para que você se pegue emocionado em dois momentos específicos, que eu colocaria como duas cenas que figurariam fácil entre as melhores da filmografia do diretor: quando ela questiona o motivo de Sheeran estar ligando para um determinado personagem e sua ultima aparição no longa – momento realmente de cortar o coração, tanto por ela quanto pelo personagem de De Niro.
Enfim, essa ambiguidade moral e de sentimentos torna O Irlandês um filme obrigatório, que além de sua perfeição técnica e artística – a fotografia de Rodrigo Prieto realmente sabe a hora de diminuir e aumentar os tons de cores, além dos enquadramentos precisos e muitas vezes dando uma sensação de claustrofobia – sem falar que a passagem de tempo é bastante natural e suave, graças ao trabalho da editora parceira de Scorsese, Thelma Schoonmaker.
Um trabalho que, mesmo contando uma história de época, tem um amargo gosto de atualidade, principalmente quando mostra como a corrupção e as formas do sistema se organizar são letais até hoje – mesmo que por outros tipos de “Irlandeses”.