Imagine uma pequena comunidade no centro de um vasto território do velho oeste norte-americano. Povoe esse mundo com todos os tipos de pessoas e estórias de um filme de faroeste, tais como bandidos assassinos, saloons com mesas de poker e prostitutas, grupos de cidadãos que se juntam ao sheriff para caçar um criminoso foragido, ranchos de criação de gado e de cowboys, enigmáticos vilões que sadicamente executam quem cruza seu caminho, hordas de índios sedentos por escalpos, mocinhos que voltam à cidade para reencontrar seu amor, lindas filhas de fazendeiro prestes a descobrirem seus destinos. Estas são algumas dentre inúmeras estórias acontecendo em todos os cantos da região, diversas possibilidades de aventura, prazer, redenção e brutalidade. Acrescente a esse mundo visitantes determinados a vivenciar essas possibilidades com a garantia de que nenhum prazer será negado e nenhum pecado será punido. Nem a morte terá poder sobre eles. Bem que poderia ser, mas essa não é a descrição do jogo Red Dead Redemption.
{Este artigo traz três referências a cenas do filme que não chegam a comprometer a surpresa de quem for assistir. Se mesmo assim não desejar conhecer detalhes da estória, assista o filme antes de ler o artigo.}
Em 1978 a série Ilha da Fantasia explorou a ideia de um mundo onde os sonhos dos visitantes se realizavam. Chegavam de avião e eram recebidos pelo sr. Roarke e seu pequeno assistente Tattoo, que lhes ofereciam a chance de experimentar uma vida alternativa. O risco era o sonho se tornar pesadelo. Se na ilha do sr. Roarke as fantasias se concretizavam graças a cenários realistas e atores humanos muito bem treinados, em Westworld o mundo alternativo surge da bioengenharia e sofisticados sistemas de inteligência artificial, ingredientes ideais para os piores pesadelos. Na nova série da HBO, homônima do filme de 1973 que a inspirou, é um grande parque de diversões onde adultos gastam alguns milhões de dólares para vivenciarem experiências ao estilo dos jogos eletrônicos de mundo aberto. Na Ilha da Fantasia o hóspede vivia uma experiência criada por atores, o que impunha óbvias limitações às estórias. No parque de Westworld os anfitriões são seres orgânicos construídos por bioengenharia com inteligência artificial. Numa experiência onde nenhum crime contra os anfitriões é proibido para o visitante a consciência individual destes é o único limite.
E consciência e senciência são chaves na trama na série. As personagens que às dezenas um jogador mata nos jogos Grand Theft Auto ou Red Dead Redemption não são seres individualizados, com inteligência, sentidos, emoções e memórias, nas quais possamos suspeitar haver alguma autoconsciência ou sofrimento. Em Westword, entretanto, as personagens têm inteligências artificiais que as levam a se comportar como humanos, num nível em que pode ficar difícil distinguir a imitação do imitado. A ideia por trás do Teste da Sala Chinesa, imaginado por Alan Turing, é que se não podemos distinguir entre uma consciência humana e uma imitação, podemos, então, considerar ambos como consciências. O que nos leva à pergunta: é possível que, de alguma forma, esses androides estejam sofrendo? Poderiam ter consciência disso? Filósofos e psicólogos como Kant e Freud pensaram a consciência como a operação pela qual um ser se percebe individual frente ao restante do ambiente e passa a refletir sobre si e sobre o outro. Isso nos leva ao o diálogo ocorrido aos 42 minutos do primeiro episódio entre os criadores dos anfitriões (dr. Ford, por Anthony Hopkins, e dr. Wright, por Bernard Lowe). Ford lembra que “a evolução criou toda a vida senciente” na Terra usando o erro (evolucionismo darwiniano). Nós, humanos, somos o “produto de trilhões deles”, o que nos permitiu desenvolver o que chamamos de autoconsciência, que não é mais que uma “autoilusão”. Na medida em que desenvolvemos Ciência “conseguimos escapar da prisão evolutiva” e dominamos a natureza. Na série o conhecimento pode ter levado os humanos a criarem um novo tipo de ser que, de mera cópia de nós mesmos, a partir de novos erros evolutivos, pode vir a se tornar algo mais que nós. A inteligência (artificial), criada para iludir outras inteligências (humanas), pode estar a um passo de desenvolver a capacidade de se autoiludir e adquirir autoconsciência. Com efeito, quando a anfitriã Dolores (Evan Rachel Wood) se observa no reflexo de uma janela aos 20 minutos do segundo episódio é o momento em que notamos que ela passa a ter consciência de si mesma. Ela se percebe individual frente ao ambiente que a cerca, o que fica claro por seu estranhamento frente ao seu reflexo.
O que pode acontecer, então, quando uma criatura começa a refletir sobre sua própria condição e sobre a natureza de sua realidade? Como reagiria uma inteligência artificial que consegue se perceber como indivíduo e descobre que está presa a um mundo cujo único significado é a satisfação de prazeres egoístas de seus criadores? Do que seria capaz para preservar sua existência e evitar o sofrimento? Antes que alguns caiam na tentação de responder pelo óbvio, ao estilo do que ocorre em Exterminador do Futuro, onde máquinas simplesmente decidem pelo extermínio de seus criadores, devemos lembrar que androides que pensem como humanos, a exemplo de seus criadores, poderiam tomar outros caminhos imprevisíveis. Nisto, esperamos, reside a grande oportunidade desta série.
Escrito por Jonathan Nolan (Interstellar, Batman: O Cavaleiro das Trevas) e Lisa Joy Nolan com base no trabalho original de Michael Crichton (Jurassic Park, Coma, Twister, ER – Plantão Médico) e produzido por J. J. Abrams e Bryan Burk (Lost, Star Wars VIII, Star Trek, Missão: Impossível), Westworld em seus primeiros episódios abre muitas e estimulantes possibilidades para boa uma série de TV. O primeiro episódio, “The Original”, dirigido pelo próprio Jonathan Nolan, tem um roteiro muito bem estruturado. Ainda que o espectador previamente saiba do que se trata a série, se sente envolvido pela trama o tempo todo. Pedaços de um diálogo com a anfitriã Dolores (Evan Rachel Wood) sobre os fatos que ocorrem no fim são distribuídos ao longo do episódio de forma que o espectador gradualmente vai construindo o significado do que está para ser revelado. Mas na narrativa persistem alguns elementos que não são elucidados no episódio e prometem trazer revelações ao longo da série. O enigmático homem de preto, por exemplo, interpretado por Ed Harrys, traz um interessante contraponto à aparente previsibilidade da série. Numa primeira análise é um simples vilão, que mata e estupra com crueldade pelo prazer sádico. Mas se considerarmos a forma como os jovens hoje se comportam em jogos de mundo aberto (como em GTA), notaremos que essa personagem pode ser muito mais complexa do que parece. Talvez para o homem de preto matar e se divertir sadicamente não seja moralmente errado, já que suas vítimas não passam de programas executados em corpos robóticos. Não há culpa nem crime, somente um jogo que o diverte há 30 anos. Mas agora ele parece ter um objetivo pessoal a ser atingido. Que objetivo seria esse que se torna tão interessante para quem joga há tanto tempo no parque? Não sabemos ainda se o homem de preto notou o que está para acontecer com os anfitriões. Mas fica claro no episódio segundo, “Chestnut” (castanha), que os criadores dos androides, dr. Ford e dr. Wright, sabem de algo que o resto da administração do parque parece ignorar.
Dolores é parte de uma simulação violenta, onde desejos brutais são satisfeitos por seres humanos que se permitem o que de pior pode existir na humanidade. Uma frase lhe foi dita ao ouvido e soou como uma senha para seu despertar. Ela está para descobrir o significado da citação de William Shakespeare que seu pai lhe sussurrou: “O prazer brutal tem final violento”.
NOTAS
Red Dead Redemption é um jogo eletrônico de ação-aventura desenvolvido pela Rockstar San Diego e publicado pela Rockstar Games em 2010, ambas pertencentes ao mesmo grupo da Rockstar North, desenvolvedora de outro jogo de mundo aberto de grande sucesso, o GTA - Grand Theft Auto. Em jogos de mundo aberto o jogador tem a liberdade de se movimentar por todo o território, podendo explorar como quiser ou ingressar em qualquer das diversas estórias paralelas que acontecem.
O Teste da Sala Chinesa foi proposto pelo matemático Alan Turing como meio de se verificar em que momento os computadores chegariam ao ponto de simular perfeitamente uma consciência humana. Um filme que explora mais profundamente essa ideia é o britânico Ex Machina, escrito e dirigido por Alex Garland e lançado em 2015.
Ilha da Fantasia (Fantasy Island) é uma série para TV produzida por Aaron Spelling e Leonard Goldberg, que foi originalmente ao ar na televisão norte-americana de 1978 a 1984, com Ricardo Montalbán no papel do anfitrião sr. Roarke e Hervé Villechaize no papel de seu pequeno assistente, Tattoo.
Exterminador do Futuro (The Terminator) é um filme norte-americano de 1984, dirigido por James Cameron, onde um androide construído para matar chega de um futuro onde máquinas e humanos estão em uma guerra sem tréguas, com a missão de eliminar um importante alvo estratégico.