A carreira de Ridley Scott é uma montanha-russa. Logo em seus primeiros filmes, já escreveu seu nome na história do Cinema. Em 1979, a ficção científica alcançaria outro patamar quando o diretor britânico apresentou ao mundo um conto de terror ambientado no espaço, entrelaçando para sempre esses dois gêneros, com os conceitos inovadores que estabeleceu em Alien – O Oitavo Passageiro. Seu longa seguinte, o igualmente cultuado Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), instituiu um visual urbano-futurista até hoje referenciado em inúmeras obras. O road movie Thelma & Louise (1991), com um dos finais mais corajosos e polêmicos já feitos em Hollywood, comprovou a ousadia do eclético cineasta. E Gladiador (2000), vencedor de cinco Oscars, trouxe os épicos de volta. Ele mostrou ainda a delicada questão da retomada de Jerusalém pelos muçulmanos no século XII no também grandioso, porém menos celebrado Cruzada (2005), que merece uma revisitação. O anúncio de que Scott faria uma releitura da história bíblica de Moisés, portanto, gerou um misto de entusiasmo e desconfiança, uma vez que, como a primeira frase deste parágrafo denuncia, os quase 40 anos de carreira do diretor são preenchidos também por vários filmes medianos e até alguns fracassos retumbantes de público e crítica. Qual Ridley Scott, então, dirigiria este aguardado longa: o inspirado ou o equivocado?
Boas e más notícias: como experiência cinematográfica, o filme satisfaz. No quesito fidelidade, contudo, poderá decepcionar àqueles que guardam na memória a imagem de Charlton Heston com o cajado na mão no clássico Os Dez Mandamentos (1956), de Cecil B. DeMille. É sempre válido lembrar, contudo, que o cinema é uma forma de expressão de arte, na qual o autor é livre para criar uma outra versão de fatos já narrados, históricos ou não, e incrementá-los com novos elementos. Do contrário, de que valeria contar de novo a mesma história? O cineasta que conduz a empreitada, portanto, precisa (ou deveria) estar ciente das controvérsias que suas escolhas podem gerar. Que o diga Darren Aronofski, cuja polêmica releitura da história de Noé, lançada em 2014, causou a revolta de diversos grupos religiosos de doutrinas distintas, além de ter decepcionado grande parcela do público, que não identificou naquele patriarca cheio de inquietações vivido por Russell Crowe o bom velhinho que construiu, por ordem de Deus, uma arca para salvar sua família e os demais seres viventes do dilúvio enviado por Ele para ‘lavar’ a Terra. Êxodo – Deuses e Reis, esse mais novo olhar sobre a história de Moisés, também já sentiu o amargo gostinho da rejeição, pois algumas liberdades provocaram inevitáveis discordâncias. A escolha de atores ocidentais para representar egípcios encontrou certa resistência, e a maneira imperialista como o Egito foi retratado fez com que o filme fosse banido por lá. Nestes tempos em que a discussão acerca da intolerância diante da liberdade de expressão está tão em voga, seria ótimo se o simples conceito de diversão e entretenimento fosse levado em conta na hora de se apreciar a um filme, a despeito de suas incongruências. O fato de um longa ser (livremente) baseado nas Sagradas Escrituras torna tudo mais delicado, e só o senso crítico de quem o assiste pode definir sua aceitação ou não. Assim sendo, se você não implicar com as (muitas) incoerências, poderá se deleitar com o deslumbre visual que este novo épico proporciona.
A trajetória do príncipe do Egito, filho adotivo do Faraó, que é exilado pelo próprio irmão – quando este assume o trono e descobre a verdade – e retorna para libertar seu povo, os hebreus (futuros judeus), escravizados por cerca de 400 anos, ganha contornos ainda mais heroicos quando vemos o protagonista como um valente general versado na arte da guerra. Além de hábil em batalhas campais com espada em punho, o Moisés de Christian Bale é austero, decidido e irredutível em suas convicções, alguém que só fará algo se realmente acreditar, do contrário não hesitará em contestar, atitude que toma tanto antes quanto depois de sua conversão. Já seu irmão, Ramsés, vivido com certa sonolência por Joel Edgerton, mantêm durante quase todo o tempo um comportamento similar ao de uma criança mimada. Por falar em criança... a representação visual que Ridley Scott idealizou para Deus é, digamos... singela, deixando aberta a interpretações. Contudo, intrigante mesmo foi ver Moisés só começar a falar com o Criador após ter batido com a cabeça. O cineasta ainda propõe um curioso paralelo: os atentados a bomba (isso mesmo) promovidos pela resistência formada por escravos que Moisés passa a treinar, só desencadeiam represálias por parte do exército liderado por Ramsés. Fica clara a mensagem, que atravessa séculos, de que a violência só gera mais violência, além da clara alusão ao eterno conflito entre judeus e muçulmanos na Palestina.
O elenco conta ainda com grandes nomes, porém pouco aproveitados (Sigourney Weaver mais parece uma figurante de luxo, quase não fala). O embate do longa se dá mesmo entre os dois irmãos (a exemplo de Gladiador, que é focado na rivalidade entre Maximus e Commodus), dos minutos iniciais até o esperado desfecho no Mar Vermelho. Antes de chegar lá, porém, o espectador terá visto as pragas lançadas sobre o Egito de uma maneira visualmente interessantíssima, com o acréscimo da especulação gerada pelo roteiro de que haveria explicações científicas para cada um daqueles fenômenos da natureza. Há a sugestão de que uma praga geraria a outra, que geraria a outra... até chegarmos ao ponto em que argumentos racionais não fazem mais sentido, e não haja outra alternativa para Ramsés senão reconhecer o sobrenatural, e conceder a tão sonhada liberdade ao povo hebreu. E, se há quase 60 anos, no clássico Os Dez Mandamentos, o mundo ficou maravilhado com a abertura do Mar Vermelho, chegou a vez da nova geração se impressionar com o fechamento deste mesmo mar, com efeitos visuais ‘tsunâmicos’.
Equivocado em algumas liberdades que tomou no roteiro e na edição que prejudicou o desenvolvimento de personagens secundários vividos por grandes atores, mas inspirado em certas analogias que fez, e na construção de cenários grandiosos dignos de serem emoldurados e expostos em uma galeria de arte, tamanha a beleza de suas imagens, Ridley Scott concebeu mais um épico memorável em sua carreira, com esta versão que fez para a famosa, bela e profética história de Moisés. Se já faz algum tempo que temos visto mais baixos do que altos nesta montanha-russa que tem sido a carreira do cineasta, pode ter chegado a vez de, quem sabe com uma ajuda divina, subir novamente a montanha.