Questionar a fidelidade de um filme sobre uma passagem bíblica é temerário, afinal, as próprias religiões que nela se baseiam divergem entre si sobre seus postulados. Ora, nesse caso, por que um roteirista precisa ser absolutamente fiel? É dessa premissa que parte "Êxodo: Deuses e Reis". Usa da liberdade criativa, mas não abusa, como fez "Noé". Isto é, o esqueleto é o mesmo, com algumas pitadas de "é assim mesmo que está escrito?". O tempero final é agradável, mas distante da consagração.
O filme apresenta dois equívocos que merecem destaque, conectados um ao outro, ambos relativos ao tempo. O ritmo é inconstante, resultando em um filme que, de tão longo, flerta com o tédio. Ou seja, várias cenas podiam ser abreviadas, resultando em um filme também mais breve. Não é por surpresa que Christian Bale carrega "Êxodo" do começo ao fim. Não fosse o Moisés de Bale, o resultado poderia ter sido desastroso. Não que o ator estivesse inspirado, não foi seu melhor papel - embora um Bale não inspirado seja melhor que a maioria dos hollywoodianos. Mas é o grande trunfo da obra como um todo. Surpreendentemente, Moisés não é um simples pastor que segue as ordens divinas de forma passiva. Ao contrário, Moisés, nas suas conversas com Deus (esse merece uma observação à parte), o questiona e o enfrenta. Não bastasse isso, a história dá a entender (ainda que não explicite) que Moisés, um grande cético, é ateu. Essa, uma das maiores surpresas: Deus teria escolhido um homem cético, questionador e ateu para cumprir uma missão. Irônico, não? Na verdade, não: Deus deixa claro que é justamente por ser racionalista que Moisés foi escolhido. O que poderia ser um defeito, acaba sendo uma virtude. Ok, é bem verdade que Ridley Scott opta por moldar Moisés dessa forma porque é vantajoso. É muito mais interessante Moisés retratado como um guerreiro estrategista e descrente que o tradicional pastor já mais que conhecido. Isso é ser original, o que não é novidade nem para Bale, nem para Scott. E é por isso que Moisés é quase a grande estrela do filme.
A grande estrela é o pequenino que interpreta Deus, nas conversas com Moisés. Se foi surpresa o Moisés cético, surpresa maior foi colocar uma criança para um papel dotado de complexidade como esse. Não é qualquer criança que seria capaz de dar vida a esta personagem (Deus), contracenando com um dos grandes da atualidade (Bale), e fazendo isso com competência digna dos mais experientes. Talento puro do menino.
Os efeitos podem ser sintetizados como qualidade e competência, sem nada de extraordinário. A bem da verdade, extraordinário é um adjetivo que não cabe para esse filme de Ridley Scott. Nem parece o mesmo Scott responsável por "Gladiador", esse sim, no mínimo, diferenciado (e com algumas semelhanças, como o protagonista marcante e várias cenas de ação).
Seria injusto ignorar as pequenas falhas, como a absoluta insignificância do papel de Sigourney Weaver, a atuação rasa de Joel Edgerton e a participação diminuta e (portanto) frustrante de Ben Kingley (que, por outro lado, nas raras falas, mostra muito bem quem é e o porquê da sua fama). Mas também seria injusto condenar o filme por isso, que, não obstante essas três decepções do elenco, tem um John Turturro como nunca antes visto. Uma participação também pequena (só não podem reclamar disso Bale e Edgerton), mas com sobriedade ímpar. O faraó de Turturro (Seti) fez inveja ao de Edgerton (Ramsés), tanto como papel quanto como atuação. As inconsistências do roteiro precisam ser ignoradas, pois o próprio texto-base (a Bíblia) por si só já é bastante dúbio.
Dois exemplos: Ramsés matou várias famílias de hebreus, querendo que estes entregassem Moisés, mas eles incrivelmente nada fizeram (não havia sequer um hebreu disposto a livrar as famílias?); e as pragas que tanto mal fizeram aos egípcios inexplicavelmente deixaram intactos os hebreus (exceto quando da morte das crianças, cena que tem explicação).
Longe de ser ruim, muito longe de ser ótimo, "Êxodo: Deuses e Reis", analisado como um todo, não empolga, nem decepciona; não entedia, nem emociona. É apenas mais um filme a ser visto, com o condão de entreter sem ficar na memória por muito tempo. Talvez o desafio fosse grande demais para uma história tão repetida (do tipo "um filme sobre Moisés, de novo?"). Um desafio maior que a competência indiscutível de Scott e Bale. Valeu a tentativa.