Assistir a O Poço e A Casa — ambas produções espanholas adquiridas pela Netflix — em sequência talvez tenha sido uma das experiências mais peculiares do ano de 2020. Embora este venha sendo um ano, no mínimo, complicado. No entanto, a constatação não é advinda de uma inferioridade no primor técnico dos filmes, e sim em suas naturezas relativamente parecidas.
Por mais que este artigo busque, na verdade, entender a razão do sucesso da retratação de nossa própria decadência moral, vale abrir aqui uma rápida observação pessoal: particularmente, achei A Casa inferior a O Poço em praticamente tudo que se propõe, mas não chega a se tratar de um filme ruim. O ponto aqui, são as similaridades não apenas na mensagem, mas também na forma como seus realizadores escolheram passá-las.
Essencialmente, os dois falam sobre a falta de senso coletivo e a completa ruína da moralidade humana. Para contextualizar, em O Poço, Goreng (Ivan Massagué) acorda em uma prisão vertical cujo principal intuito é distribuir um banquete a todos os participantes do experimento. No entanto, conforme as pessoas de cima devoram tudo sem pensar nos que estão abaixo, a comida vai se esgotando até que os últimos da fila morrem de fome. Ou pior.
Já em A Casa, Javier Muñoz (Javier Gutiérrez) é um executivo desempregado que, após ser forçado a vender seu apartamento, fica obcecado pela família que passa a morar lá, e tenta recuperar a vida que perdeu a qualquer preço.
Dois filmes espanhóis que chegaram à Netflix em março e fizeram um sucesso tão estrondoso quanto inesperado. Por que?
A DIVINA TRAGÉDIA HUMANA
Nesta parte, vamos focar um pouco mais em O Poço — mas prometo que o próximo item será sobre A Casa. Pessoas coletando muito mais do que precisam, estocando itens além do necessário e deixando outros seres humanos carentes das próprias necessidades. Talvez você mesmo tenha visto algo parecido nesta recente pandemia do Coronavírus (COVID-19), correto? E é exatamente neste ponto que O Poço começa a se relacionar conosco.
Alguns filósofos e sociólogos defendem a tese de que é apenas durante um período de crise moral e/ou grandes tragédias que a verdadeira natureza do homem vem à tona. E nós, seres humanos errantes e naturalmente trágicos, estamos constantemente em busca de duas coisas: validação e identificação. E isso, O Poço nos oferece de sobra.
Primeiro, a validação: não é extremamente fácil olharmos para todas aquelas pessoas em seus respectivos níveis e pensarmos o quanto nós provavelmente faríamos diferente? Ou seu primeiro pensamento ao assistir ao filme foi: "é, eu provavelmente seria egoísta como a maioria destas pessoas"?
A grande questão é que ninguém pensa em ser egoísta, até que acabe sendo. Se estes mesmos personagens do filme existissem na vida real, e tivessem a oportunidade de assistí-lo, a maioria deles também procuraria validar a atitude utópica de coletividade. Mas quem a pratica é a maioria, não é mesmo? Temos aqui um problema com números. E até mesmo aqueles que pudessem admitir a possibilidade de escorregarem na própria moralidade, buscariam justificativas para isso — fossem elas reais ou não.
A segunda parte é a identificação, que já está um tanto óbvia depois dos parágrafos anteriores. Sem querer cair na explicação óbvia da alusão que O Poço faz não apenas ao sistema capitalista, mas também à falta de solidariedade e reciprocidade nas relações humanas, está bem claro que o sistema de andares funciona mais ou menos como a nossa sociedade: os que estão acima sentem-se superiores apenas pela aleatoriedade que os permitiu estarem num lugar privilegiado, enquanto os de baixo aceitam que fazem parte da escória, também pela mesma aleatoriedade.
Um trecho que me chamou particular atenção foi aquele em que Trimagasi explica ao protagonista que "estar no meio é a melhor coisa", pois aqueles que estão embaixo não sobrevivem, e os que estão em cima já possuem tanto que são facilmente comedidos pela depressão. Se você já ouviu que "depressão é doença de rico", marque um X na cartela do Bingo.
A ETERNA CASA DE PAPEL
E sobre A Casa?
O que mais me chama atenção aqui é a facilidade com que tudo é digerido de maneira tão frenética e até mesmo um pouco simplista. Não me entendam mal: o filme cumpre muito bem o seu propósito de oferecer uma reviravolta atrás da outra, mas no geral a suposta inteligência da trama fica apenas na superficialidade.
Começamos pelo protagonista, que não é nem tão digno a ponto de ser um anti-herói e nem tão descabidamente cruel a ponto de ser um vilão clássico. O que também não é um problema, dados exemplos como o de Jake Gyllenhaal que, em O Abutre, constrói um personagem perfeitamente equilibrado entre a apatia e a escalada para o sucesso profissional (que é a única coisa que lhe importa, na realidade).
Aqui, no entanto, A Casa entrega atitudes que não possuem um desenvolvimento prévio e parecem ter sido simplesmente jogadas ao vento. Mas sua eficácia está no mesmo motivo pelo qual La Casa de Papel fez um sucesso tão grande internacionalmente: a utilização de uma suposta inteligência de roteiro que passeia apenas pela superficialidade.
Algumas mensagens são até interessantes, com um destaque especial para o detalhe da torneira pingando, que simboliza o quanto o protagonista Javier é um eterno infeliz e estará sempre em busca de novas maneiras para satisfazer seus desejos gradativamente doentios. Mas o trunfo das produções espanholas é saber encontrar um equilíbrio difícil de conquistar, perfeitamente localizado no limiar entre a "farofa" e o "filme cabeça". O problema é quando isso acaba caindo em uma repetição desagradável, como aconteceu mais ao fim de La Casa de Papel.
O FIM
Explicar a razão por trás do consumo da tragédia é como tentar desvendar a razão pela qual os filmes de epidemias subiram diante da situação do Coronavírus. Parte por identificação ao que estamos passando, parte por uma sede pelo trágico que nos acompanha desde os primeiros anos da arte na humanidade, parte por uma curiosidade que é simplesmente, inexplicável.
Quando vemos a realidade através de uma perspectiva distópica de como as coisas são e funcionam, torna-se muito mais fácil absorver certas mensagens. Ou você acha que O Poço teria a mesma eficiência se fosse mais didático e menos subversivo? Se a ruína do sistema capitalista fosse retratada como em um comercial publicitário?
Precisamos da ambiguidade. Seja na vida, na arte, na ficção ou nas relações interpessoais. A incerteza, a identificação, o drama, a tragédia, tudo isso é humano. E aliados a uma boa estratégia de marketing, a confluência destes elementos resulta em obras como A Casa e O Poço, por exemplo. A barreira seguinte, agora, é levar o que se aprende na arte para a vida real — antes que as duas coisas continuem imitando umas às outras.