Minha conta
    De Star Wars a horror gore, entenda as referências de Bacurau

    Filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles já foi chamado até de "guacamole de gêneros".

    "Ao espectador, cabe acompanhar a narrativa como quem tateia um caminho às escuras: aos poucos, sem certezas, aberto às inevitáveis surpresas que virão. Esta não é uma dessas produções que busca agradar o espectador a todo custo: ela se move por um caminho peculiar, ciente de sua heterogeneidade, deixando ao público a tarefa de acatar, ou não, as subversões propostas". É assim que o crítico do AdoroCinema, Bruno Carmelo, descreve a experiência do espectador diante da pluralidade de Bacurau. Confira o texto completo

    Independentemente do juízo de valor atribuído ao longa dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, não se pode negar que a produção exibe um material farto em referências, alegorias e variedade de gêneros cinematográficos — característica apelidada por Alejandro González Iñárritu de "guacamole de gêneros". Algumas sutis, outras mais escancaradas, mas todas com o intuito de romper, de alguma forma, com as expectativas iniciais do espectador, conduzindo-o por uma experiência, no mínimo, intrigante.

    Se você, assim como o resto de nós, saiu do cinema com a cabeça levemente bugada, confira essa lista para entender o contexto por trás de algumas das escolhas criativas da dupla de realizadores brasileiros, que, em um único produto, entrega uma mistura de faroeste, terror e ficção científica.

    Udo Kier

    O intérprete de Michael é uma referência por si só. Figurinha carimbada nas produções de terror (principalmente gore), Kier é frequentemente referido como um herói cult. Além disso, ele é o queridinho de alguns dos diretores mais aclamados de todos os tempos, como Gus Van SantLars von Trier e Rainer Werner Fassbinder, que já o dirigiram em múltiplas ocasiões. Em sua extensa carreira, que inclui mais de 250 filmes, o ator alemão ficou marcado pela escolha de papéis excêntricos, normalmente vampiros ou vilões fadados a uma morte terrível. Não são raras as ocasiões em que roteiristas criam um personagem pensando especificamente nele para interpretá-lo, se recusando até a sequer considerar um ator diferente para o papel. Sua presença nos filmes de terror iniciou em Mark of the Devil, de 1970, e continua até hoje, raramente saindo dos papéis absurdos.

    Entre as produções de horror de maior destaque em que atuou estão o clássico Suspiria (1977), de Dario Argento, Carne para Frankenstein (1973), de Paul Morrissey e Antonio Margheriti, e Sangue para Drácula (1974), também de Morrissey, onde Kier interpreta o próprio conde. Entre os longas mais recentes estão Anticristo (2009) e Melancolia (2011), ambos de Lars von Trier, A Pé Ele Não Vai Longe (2018), de Gus Van Sant, e Meu Filho, Olha o Que Fizeste! (2009) de Werner Herzog. Agora ficou claro porque Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles o escolheram para Bacurau, não é?

    Transição Wipe

    Quem não se lembra do efeito de mudança gradual tão usado nos filmes Star Wars, em que um plano substitui outro empurrando-o para a lateral ou com um contorno específico? Empregada amplamente nos anos 1920 nos chamados cinesseriados — filmes B editados em episódios e exibidos em sequência nos cinemas da época —, a técnica acabou se tornando uma das marcas de George Lucas, que, por sua vez, foi inspirado por Akira Kurosawa. O diretor japonês era um grande adepto da transição e fez uso dela em quase todos os seus filmes, incluindo os clássicos Rashomon (1950) e Os Sete Samurais (1954).

    Enquanto algumas transições implicam uma passagem de tempo, o wipe normalmente deixa implícita uma ação continuada que ainda não foi resolvida. Por essa razão, é uma técnica mais utilizada em filmes com muito movimento ou múltiplas histórias que se passam em espaços diferentes. Pode ser usada também para justapor dicotomias como o bem e o mal, luz e escuridão etc. Há também o caso em que é utilizada para indicar que a ação na cena A vai afetar diretamente os acontecimentos da cena B, e vice versa, ou para apresentar um cliffhanger, sugerindo que um retorno à cena será feito posteriormente. Tudo depende, é claro, da situação e da escolha criativa que o montador faz dela.

    O céu estrelado de Star Wars

    E já que estamos falando de George Lucas, é impossível deixar passar a referência à galáxia muito, muito distante vista em Bacurau, logo em seus minutos iniciais. Assim como nos filmes da saga, o longa brasileiro também apresenta o povoado nordestino a partir de uma imagem panorâmica composta pelos pequenos pontos brancos das estrelas sobre um fundo preto, com a câmera se deslocando para a lateral para nos situar no planeta onde a cena seguinte irá se passar. No caso de Bacurau, estamos no planeta Terra, sobre o território nacional, até que um zoom nos conduz até a cidade pernambucana em que a trama vai se desenvolver.

    Outra referência está no letreiro inicial em que se lê "daqui a alguns anos", o que os realizadores usaram como recurso para inserir o espectador em uma realidade suspensa, futurista.

    Sam Peckinpah 

    Conhecido como "o poeta da violência", por conta de sua representação explícita de ação e violência nos westerns clássicos, o cineasta americano Sam Peckinpah e seu estilo foram inspirações para Bacurau, como o próprio Kleber Mendonça já admitiu, citando como exemplo o filme Juramento de Vingança (1965). Na trama do faroeste, o major Amos Dundee (Charlton Heston) cruza ilegalmente a fronteira do México com suas tropas, depois que um grupo de índios apaches liderados por Sierra Chariba sequestra alguns meninos. Dundee tem o compromisso de recuperá-los e, junto com o tenente Benjamin Tyree (Richard Tyreen), vai atrás de Chariba. Ao longo de vários meses, eles lutam não só com os apaches, mas também contra as tropas francesas. À medida que a missão continua a tensão aumenta, o que leva a um confronto final com seu inimigo.

     

    Marielle Franco e João Pedro Teixeira

    Nos momentos finais de Bacurau, uma lista com os nomes de alguns dos moradores do povoado é lida — para evitar spoilers, vamos resumir a cena a isso. É impossível deixar de notar que, entre eles, estão uma Marielle e um João Pedro Teixeira. Questionados se o nome da personagem era uma homenagem a Marielle Franco, os diretores Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles disseram que todos os nomes na lista são inspirados em pessoas reais. "Sim, as pessoas existem, têm nome e sobrenome. A nossa Marielle não é a mesma, mas o nome é. O filme se torna um documento. Daqui uns anos as pessoas talvez pesquisem e descubram mais coisas sobre essas pessoas", declarou Kleber, durante a coletiva de imprensa no Festival de Gramado. Em seguida, Sônia Braga ressaltou: "Dedico este personagem à Marielle. E quero saber: quem matou Marielle?".

    No caso de João Pedro Teixeira, a referência é ao destaque da militância agrária, no final dos anos 1950. O líder da Liga Camponesa de Sapé foi assassinado por policiais com tiros de fuzil, em abril de 1962, a mando de fazendeiros da Paraíba. Sua morte se tornou um símbolo da luta por terra e da criminalização dos movimentos populares durante o pré-golpe militar de 1964. O nome de João hoje consta no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria, que homenageia personalidades com destaque na história do Brasil. A vida e morte de Teixeira foram retratadas no documentário Cabra Marcado para Morrer, considerado a obra-prima do cineasta Eduardo Coutinho

    Entre os nomes da cena de Bacurau, há também uma Marisa Letícia, possivelmente uma referência à Marisa Letícia Lula da Silva.

    Lia de Itamaracá 

    Maria Madalena Correia do Nascimento, mais conhecida como Lia de Itamaracá, é ninguém menos que a rainha da ciranda, figura cultuada no Nordeste brasileiro e consagrada internacionalmente como a maior representante do folguedo. Lia sempre morou na ilha usada em seu nome artístico, localizada em Pernambuco. Considerada "a diva da música negra" pelo jornal americano The New York Times e uma lenda da região brasileira, Lia também foi reconhecida por uma lei estadual como Patrimônio Vivo de Pernambuco. 

    A dificuldade financeira fez com que Lia dividisse sua carreira de cantora com afazeres na Ilha de Itamaracá, onde trabalhou como merendeira de escola por 28 anos. Ela vive no local até os dias de hoje. Com um currículo desses, não é surpresa que ela tenha sido escolhida para interpretar Carmelita, a matriarca de Bacurau e um dos maiores símbolos da história do povoado. Confira abaixo uma das cirandas mais conhecidas da artista, Eu Sou Lia.

    Eu sou Lia da beira do mar

    Morena queimada do sal e do sol

    Da Ilha de Itamaracá

    Quem conhece a Ilha de Itamaracá

    Nas noites de lia

    Prateando o mar

    Eu me chamo Lia e vivo por lá

    Cirandando a vida na beira do mar

    Cirandando a vida na beira do mar

    Vejo o firmamento, vejo o mar sem fim

    E a natureza ao redor de mim

    Me criei cantando

    Entre o céu e o mar

    Nas praias da Ilha de Itamaracá

    Nas praias da Ilha de Itamaracá.

    facebook Tweet
    Links relacionados
    Back to Top