O NOVO (VELHO) REINADO
Igualmente conhecido como o ano da invasão do Iraque pelas tropas estadunidenses de George W. Bush, patrocinadas diretamente pela "Guerra ao Terror", 2003 viu uma obra se aproximar muito de Titanic, seja em termos de aclamação de público e crítica e prêmios. O Senhor dos Anéis - O Retorno do Rei não é apenas o pináculo da trilogia de Tolkien; a obra de Peter Jackson é também o ápice do cinema de fantasia - e sacramentou a ideia de que os investimentos da New Line na saga literária, anteriormente considerado como "insanos" pela crítica, eram uma jogada de mestre. Com seus US$ 1,2 bilhões arrecadados, a aventura estrelada por Viggo Mortensen tornou-se o segundo filme a entrar no clube do bilhão e varreu a premiação da Academia: indicado a 11 Oscar, O Retorno do Rei venceu todas as estatuetas e empatou o recorde de vitórias anteriormente estabelecido por Ben-Hur e pelo próprio Titanic. Descrito como uma utilização visionária dos efeitos especiais e como uma conclusão perfeita, O Retorno do Rei avançou as fronteiras cinematográficas e tornou-se o novo ponto de referência para a estética de seu gênero.
Logo na cola de O Senhor dos Anéis 3, a Disney veio com mais dois triunfos estrondosos, sendo um deles "patrocinado" por sua subsidiária de maior sucesso, a Pixar: Procurando Nemo, segundo colocado no ranking geral das bilheterias de 2003, com US$ 898 milhões; e o quarto da lista, Piratas do Caribe - A Maldição do Pérola Negra (US$ 654 milhões). Enquanto o primeiro tornou-se uma das maiores e mais queridas animações da história, atingindo o status de clássico instantâneo, o segundo filme em questão provou que Hollywood poderia tirar cinema dos lugares mais inesperados - incluindo uma atração de parque de diversões - e que as marcas estavam a caminho de se tornarem maiores que a própria sétima arte em si. Diretamente da Disneylândia para as telonas, Piratas do Caribe iniciou uma bem-sucedida franquia de bilhões de dólares e elevou a fama de seu protagonista, o controverso Johnny Depp. Ainda, as continuações diretas de Matrix e X-Men não repetiram os sucessos originais de crítica, mas aumentaram os lucros: Reloaded obteve US$ 742 milhões, ao passo que X-Men 2 lucrou US$ 407 milhões.
Os rendimentos descritos acima demonstram que as animações computadorizadas e as sagas não só se mantiveram em seu lugar de destaque, como também garantiram posição cativa no domínio das bilheterias, cristalizando suas respectivas tendências como projetos intrínsecos à indústria. Assim, 2004 e 2005 foram marcados pela dominância dos longas animados da Pixar e da DreamWorks e pelo prosseguimento de franquias como Harry Potter e Star Wars, especialmente sem a concorrência da recém-finalizada trilogia de O Senhor dos Anéis. Shrek 2 (US$ 919 milhões), Os Incríveis (US$ 633 milhões) e Madagascar (US$ 532 milhões) reinaram como longas para toda a família, à medida que Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban (US$ 796 milhões), Harry Potter e o Cálice de Fogo (US$ 897 milhões) e Star Wars - Episódio III: A Vingança dos Sith (US$ 849 milhões) mantiveram o interesse de seus fervorosos fãs. Entretanto, o período - que ainda traria mais um sucesso de Steven Spielberg, Guerra dos Mundos (US$ 704 milhões) - é mais importante para nossa análise por causa de outro aspecto completamente diferente: a revolução precoce sofrida pela recém-nascida fase do cinema de super-heróis após um período "trágico".
A QUEDA DOS HERÓIS
À exceção dos mutantes e de Peter Parker, quase nenhum outro personagem que nasceu dos quadrinhos, sejam eles da Marvel, da DC ou de companhias terceiras, encontrou marés favoráveis entre 2003 e 2005. Um dos "primos" mais próximos destes heróis citados, o Hulk, não fez uma boa primeira viagem às telonas. Dirigido pelo cultuado Ang Lee, um dos mais importantes cineastas internacionais da história recente e, à época, responsável por obras premiadas como O Tigre e o Dragão e Razão e Sensibilidade, a aventura não correspondeu às expectativas dos executivos da Universal. Produzido por US$ 137 milhões, Hulk não foi capaz de quitar seus gastos - incluindo a verba de publicidade - ao arrecadar "apenas" US$ 245 milhões. Os críticos até compreenderam o que Lee tentou realizar ao aliar sua sensibilidade e preocupações estéticas à trajetória de Bruce Banner (Eric Bana); todavia, a abordagem barroca afastou o público - a obra registrou uma queda de 70% na venda de ingressos da primeira para a segunda semana de exibição. O herói só seria redimido anos depois, através da essencial interpretação de Mark Ruffalo.
Porém, não há nenhum filme que seja "páreo" para o execrado e tétrico Mulher-Gato, de 2003 - que, assim como Super Mario Bros., 10 anos antes, redefiniu o conceito de flop. Ao mesmo tempo em que Sam Raimi elevava seu próprio trabalho em Homem-Aranha 2 (US$ 783 milhões), levando a franquia ao Oscar de Melhores Efeitos Especiais, e Os Incríveis - jovem clássico do gênero - aceitava a estatueta de Melhor Animação, Mulher-Gato “triunfava” no Framboesa de Ouro. Eleito pior filme do ano, o longa com a anti-heroína da DC ainda sairia da “premiação” com outros três troféus: pior atriz para Halle Berry - que aceitou o troféu com bom-humor -, pior roteiro e pior diretor para o obscuro Pitof, especialista em efeitos especiais francês que jamais voltou a comandar um longa-metragem após a catástrofe em questão. Responsável por abrir um rombo milionário nos cofres da Warner, o hiperssexualizado longa foi considerado pelos críticos como apenas uma desculpa para colocar a belíssima Berry para lutar em um apertada roupa de couro. Desonrado por seu próprio roteirista recentemente, Mulher-Gato custou US$ 100 milhões, arrecadou apenas US$ 82 milhões e é considerado como um dos piores filmes da história.
No fascículo presente e nos capítulos passados, debatemos muito sobre valores, prejuízos e lucros. Números puros, no entanto, nem sempre são o bastante para sublinhar a influência de uma película específica, como é o caso de Batman Begins (US$ 374 milhões). No período, a estreia de Christian Bale como o Homem-Morcego não chegou perto da arrecadação de alguns de seus concorrentes mais badalados, como Homem-Aranha ou X-Men 2; porém, se o Universo Cinematográfico Marvel é o que é atualmente, a companhia de Stan Lee e Avi Arad certamente deve muito à visão do cultuado Christopher Nolan para o Maior Detetive do Mundo. Aliás, Batman Begins não só nos ajuda a compreender o fenômeno do UCM como também pode ser um fantástico ponto de partida para o leitor que quiser entender melhor o fascínio gerado pelo diretor de Dunkirk e A Origem.
BATMAN, A FÊNIX
De acordo com o realizador, seu objetivo era narrar a história de origem de Bruce Wayne de uma maneira realista, explorando o contexto que deu origem ao Batman de uma forma dramática e humana. Ainda pouco conhecido pelo grande público mesmo após o sucesso de Amnésia, o megalomaníaco e talentoso Nolan desejava, em suma, inscrever seu nome na história e recriar um dos mais importantes personagens da cultura pop. Favorecendo o conteúdo sobre o estilo - por mais que Batman Begins, no fim das contas, tenha a assinatura característica de Nolan -, o diretor buscou um elenco de coadjuvantes de luxo para apoiar a performance fenomenal do dedicado Bale, que ganhara 45 quilos de massa muscular para interpretar o Batman após sua esquelética aparição em O Operário. Dito e feito: contando com nomes como Michael Caine, Liam Neeson e Morgan Freeman, Nolan superou Tim Burton e fundou a trilogia essencial do cinema de super-heróis.
A partir de Batman Begins, produzido por US$ 150 milhões, nada seria igual. Marco dos anos 2000 e da sétima arte como um todo, a aventura foi elogiada pela crítica por fazer jus à essência da psiquê fragmentada de Bruce Wayne e elevou o gênero como um todo. Os heróis, que até então eram considerados pelo público geral - por puro preconceito, diga-se de passagem - como personagens para os jovens e cujos filmes pareciam depender em demasia de efeitos especiais, ganharam um caminho inédito. Sombrio, tenso, inteligente e repleto de ação e de efeitos práticos, Batman Begins mudou o jogo ao introduzir a ideia de que os super-heróis poderiam ser sérios, psicologicamente aprofundados e, ainda assim, extremamente lucrativos - mesmo que Batman Begins tenha sido bizarramente promovido pela Warner como uma história de amor entre Wayne e Rachel Dawes (Katie Holmes) ao som de "Someday", da banda Nickelback.
O novo pico alcançado por Batman Begins representaria outra reviravolta na trajetória dos blockbusters. Os super-heróis, que ainda não tinham levado a melhor sobre as franquias de fantasia ou as animações, virariam o jogo definitivamente em 2008, no exato instante em que a Marvel e a DC conseguiriam impactar, positiva e enormemente, toda a indústria ao mesmo tempo e de uma só vez.