Este é o quarto capítulo de A História dos Blockbusters, minissérie em seis partes do AdoroCinema. Confira a Parte 1: Sobre épicos, cineastas autorais e tubarões, a Parte 2: Em uma galáxia muito, muito distante... e a Parte 3: Os reis do mundo.
Com muros, virtuais e reais, derrubados e o medo do "bug" do milênio - que, segundo boatos, colapsaria todos os sistemas informáticos do planeta no ano novo de 2000 - superado, a globalização obliterou fronteiras. O júbilo acarretado pela possibilidade de conectar pessoas em todos os cantos da Terra através da internet dava aparentes mostras de que o mundo mudaria, e para melhor. Entretanto, a primeira década do terceiro milênio também guardava algumas guerras sangrentas; ataques terroristas que mudaram para sempre a história da humanidade, como o 11 de setembro; o surgimento do temor pelo aquecimento global; e uma crise econômica histórica que só encontraria paralelos com a Quebra da Bolsa de Valores, em 1929. Com tantos temas para aproveitar e tragédias para capitalizar sobre, é evidente que Hollywood não deixou passar nenhuma oportunidade.
Nos estágios iniciais dos anos 2000, a indústria cinematográfica decidiu explorar novamente a ideia de escapismo inerente às histórias em quadrinhos - e as majors se aproveitaram da moribunda Marvel para tanto. Enfrentando gravíssimos problemas financeiros desde 1996, a companhia de Stan Lee foi assumida por Avi Arad, que viu nas telonas a melhor saída possível para seu momento conturbado. Após o fracasso retumbante do bizarro Howard, o Super-herói, clássico cult dos filmes ruins, a empresa precisava de um sucesso para fazer frente à Warner com as produções da DC, como Batman e Superman. Quando Blade, estrelado por um "vampiresco" Wesley Snipes, arrecadou US$ 131 milhões em 1998, Arad utilizou os bons rendimentos para convencer as majors do potencial da Marvel nas telonas. Foi assim que o executivo conseguiu negociar os mutantes dos X-Men para a Fox e o Homem-Aranha para a Sony - em 2000, a Marvel ainda não tinha planos para voltar a produzir seus próprios longas.
O RETORNO DAS CINZAS
X-Men - O Filme foi a nona maior bilheteria do ano 2000, arrecadando US$ 296 milhões ao redor do mundo. Dirigida por Bryan Singer - acusado de abuso sexual em 2017 e afastado do comando da franquia que ajudou a criar -, a aventura trouxe os famosos personagens das HQs para os cinemas e projetou as carreiras de nomes como Hugh Jackman e Halle Berry ao mesmo tempo em que teve seu material elevado pelas performances de atores experientes, Sir Patrick Stewart e Sir Ian McKellen. Aprovado pela crítica, que logo pediu a produção de uma sequência, X-Men - O Filme é a película responsável por inaugurar a modernidade dos super-heróis nas telonas. As chances do gênero, que praticamente haviam sido assassinadas por produções como Batman & Robin e Spawn, o Soldado do Inferno, foram reacendidas e Hollywood não pensou duas vezes antes de prestar maior atenção aos quadrinhos.
Mas os comic books não foram as únicas literaturas que tomaram a sétima arte de assalto. Depois de um período relativamente plácido para as obras de fantasia nos cinemas, dois autores mudaram o cenário com suas aclamadas séries literárias: J.K. Rowling e J.R.R. Tolkien. A primeira, responsável por todo o Universo Harry Potter, já era uma escritora aclamada por sua magnum opus, a saga do bruxinho mais famoso de todos os tempos. Lançado em 1995, "Harry Potter e a Pedra Filosofal" (ed. Rocco) precisou de seis anos para ganhar as telonas e, assim que fez sua estreia, modificou o jogo. Como uma verdadeira força da natureza, o primeiro Harry Potter varreu as bilheterias e pulou diretamente para o topo do ranking de arrecadação em 2001 - seus US$ 974 milhões, inclusive, catapultaram-no para a segunda colocação da lista geral, roubando o lugar anteriormente ocupado por Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma.
A ERA DA FANTASIA
Também de 2001 data a primeira adaptação da obra de Tolkien para as grandes telas: O Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel atingiu um total de US$ 870 milhões e conquistou a crítica e o público em iguais e massivas medidas. Inebriada pela ousada, extremamente tecnológica, fantasticamente digital e épica obra de Peter Jackson, a imprensa especializada colocou a aventura fantástica em um novo patamar de aclamação. No fim das contas, A Sociedade do Anel sairia do Oscar 2002 com quatro Oscar na bagagem e outras nove indicações à prestigiada premiação da Academia, incluindo Melhor Filme e Melhor Direção. Considerado como um dos 100 melhores filmes estadunidenses de todos os tempos, A Sociedade do Anel deu início a uma das trilogias mais bem-sucedidas da história da sétima arte.
Os anos de 2001 e 2002, na verdade, foram completamente dominados por Rowling e Tolkien - quase não sobrou espaço para prestar atenção no "tímido" lançamento de um tal de Velozes & Furiosos (US$ 207 milhões), que surpreenderia a todos uma década depois. Salvo raras exceções, nenhuma produção chegou remotamente perto dos rendimentos das duas imensas franquias. E se no primeiro momento Harry Potter (Daniel Radcliffe) levou a melhor sobre Frodo (Elijah Wood) e companhia, no ano seguinte as coisas mudaram: com seus US$ 926 milhões arrecadados, O Senhor dos Anéis - As Duas Torres, vencedor de mais dois Oscar, superou os US$ 878 milhões de Harry Potter e a Câmara Secreta, obra mais vista fora dos Estados Unidos em todo o mundo. Outros destaques da época ficam por conta de animações computadorizadas e com efeitos visuais digitais avançados, como Monstros S.A. (US$ 577 milhões), da Pixar, e Shrek (US$ 484 milhões), da DreamWorks; e sequências como Star Wars - Episódio 2: Ataque dos Clones (US$ 649 milhões) e Homens de Preto II (US$ 441 milhões).
Mas se Harry Potter e O Senhor dos Anéis - ambas as produções da poderosa Warner merecem até mesmo capítulos próprios para que seus impactos culturais e midiáticos sejam fielmente explorados e retratados - inauguraram uma nova era para o gênero da fantasia no cinema, com seus retratos realistas do uso da magia e seus universos inteiramente inéditos e personagens cativantes, outra produção do período também brigaria pelo título de obra cinematográfica mais influente da época: Homem-Aranha. Após inúmeros imbróglios jurídicos entre a MGM e a Sony e trocas de comando - cineastas como James Cameron, que escreveu o primeiro tratamento do roteiro, David Fincher, Ang Lee, Roland Emmerich e Chris Columbus foram cotados para assumir a cadeira de direção -, Homem-Aranha finalmente começou a ser pré-produzido em 2001 com Sam Raimi (Uma Noite Alucinante - A Morte do Demônio) como realizador responsável pelo projeto.
Equilibrando o realismo - portanto, distanciando-se da abordagem mais cartunesca de Burton - com sequências de ação de tirar o fôlego, Homem-Aranha estreou com a força de um tsunami: em apenas três dias de exibição, o longa, protagonizado por Tobey Maguire, estabeleceu um novo recorde, com US$ 114 milhões arrecadados. Descrito como charmoso, emocionante e divertido pela imprensa especializada, Homem-Aranha trouxe o Cabeça de Teia navegando pelos prédios de Nova York - exaltando e lavando a alma, portanto, de uma cidade que acabara de ser golpeada da pior e mais trágica forma possível - pela primeira vez nas telonas e só fez aumentar seus rendimentos nas semanas seguintes à première. Assim como X-Men, a aventura também abriu espaço - e criou interesse - por mais sequências e, no fim das contas, arrecadou US$ 821 milhões para se tornar o maior filme de super-heróis de todos os tempos.
Assim, o início dos anos 2000 foi dominado por um certo marasmo com as obras de Rowling e Tolkien se revezando no topo das arrecadações, pontuado apenas pelos ocasionais sucessos da Fox e da Sony com os super-heróis das HQs. E enquanto todas as outras companhias, ainda paralisadas pelo sucesso retumbante de Harry Potter e O Senhor dos Anéis, tentaram seguir o caminho da fantasia aberto pela Warner, a Marvel decidiu que era hora de agir após observar os abundantes lucros de seus heróis caírem diretamente na conta de outras companhias no fim de 2002. A partir dali, Lee e Arad acompanhariam os êxitos e os tropeços de seus competidores de perto para traçar um plano de ação nunca antes visto na história da sétima arte, uma ousadia que reinventaria, novamente, a indústria dos blockbusters.