⚠ TEM SPOILERS DO LIVRO E DO FILME ⚠
Cemitério Maldito (Pet Sematary) 1989
"Cemitério Maldito" é a primeira adaptação do romance homônimo de Stephen King lançado em 1983. Dirigido por Mary Lambert e escrito pelo próprio King, o longa é estrelado por Dale Midkiff, Denise Crosby, Blaze Berdahl, Fred Gwynne e Miko Hughes.
A trama se passa em 1969, onde o jovem médico Louis Creed (Dale Midkiff), junto de sua família, decidem deixar a vida na cidade grande e se mudarem para uma vida interiorana na cidade de Ludlow, no Maine. Após conhecer o velho Jud Crandall (Fred Gwynne), o simpático vizinho, Louis descobre os segredos sinistros daquele local, sendo forçado a enfrentar a sombria história de sua família, que o manterá para sempre conectado com aquela cidadezinha.
Sobre o livro:
Não é à toa que o livro é considerado por muitos (incluindo eu) como uma das melhores obras literárias de toda a carreira do mestre King. A cada página que você lê você se surpreende ainda mais, pois a história tem um poder inimaginável em nos prender e aguçar a nossa mente, os acontecimentos são cada vez mais interessantes e mais misteriosos. A forma como o King vai desenvolvendo a sua história com o passar de cada página é muito interessante e muito envolvente, e deixa a gente cada vez mais curioso acerca daquele universo ambíguo que estamos conhecendo. Toda essa interpretação que o livro faz sobre o que é a morte, o que ela representa para cada um, a forma como ela é vista na história. Sem dúvida o início do livro é uma belíssima construção para o terror.
E o mais interessante é o fato do livro ser direcionado como um terror, obviamente contando uma história de terror, mas não é somente uma simples história de terror. Pois a dimensão que temos aqui vai muito além do terror e da morte, o que nos confronta diretamente com a dor, a perda, o luto, a depressão, a superação, a desilusão, a frustração, o trauma e a redenção. King constrói um história muito inteligente, intrigante, misteriosa, lúdica, que mexe com o nosso psicológico, que desperta a nossa crença sobre o bem e o mal, sobre o real e o imaginário, sobre o certo e o errado, sobre a lucidez e o ilusório. E ainda vai além, ao nos envolver com uma história surpreendente e misteriosa sobre aquele local, que foi construído sobre a base das desilusões e da fé das crianças, "O Simitério de Bichos", que é um local que mantém poderes sobrenaturais e sombrios e oculta um misterioso sepulcro indígena com poderes de ressurreição.
É impossível você lê esta história e não se prender, não se surpreender, não ficar envolvido, não se apegar pelos personagens, pois tudo é muito bem construído, muito bem desenvolvido, muito bem contado. "O Cemitério" tem a melhor história já escrita pelo mestre King, juntamente com "O Iluminado", que são os meus dois livros preferidos de sua bibliografia.
Sobre a produção do filme:
King foi muito criterioso e muito exigente ao vender os direitos autorais de seu livro para compor uma adaptação cinematográfica. King queria que a adaptação de sua obra respeitassem principalmente a essência de sua história, já que naquela mesma década ele havia se decepcionado bastante com a versão de Stanley Kubrick de seu clássico "O Iluminado". King enfrentou algumas dificuldades e recusou várias outras ofertas para uma adaptação cinematográfica, incluindo adversidades até com os estúdios de produção da época, que afirmava que não havia mais demanda por filmagem de Stephen King após uma série de adaptações de seus romances lançados durante todo os anos 80.
Desde o ano de 1984 que King já havia vendido os direitos de adaptação de seu livro, que foi passando de mão em mão, e somente no ano de 1988, durante a greve do Writers Guild of America, que a Paramount Pictures reconsiderou a ideia porque o estúdio estava enfrentando uma possível escassez de novas produções para lançamento em 1989. A partir da luz verde do estúdio que King obviamente foi rigoroso com a adaptação, começando com exigência que o filme fosse rodado no estado norte-americano do Maine e que seu roteiro fosse seguido rigorosamente. O estúdio escolheu a direção da obra, mas a palavra final foi do King, que aceitou a diretora Mary Lambert, que o impressionou com seu entusiasmo por seus romances e seu compromisso em permanecer fiel ao material original.
Mary era mais conhecida por seu trabalho na direção de videoclipes, como alguns clipes da Madonna, incluindo "Material Girl" (1984) e "Like a Prayer" (1989). Através de seu trabalho na indústria musical ela era amiga dos Ramones, que era uma das bandas favoritas do King. Mary também foi a responsável em discutir com a banda sobre a gravação de uma música para o filme, que eles logo concordaram em escrever e interpretar a clássica "Pet Sematary", que também foi outro ponto que o King adorou da diretora.
Sobre a adaptação do filme:
King esteve muito envolvido no processo de produção e filmagem do longa, consultando a diretora Mary Lambert frequentemente sobre suas ideias para a história e quaisquer desvios do roteiro que ela desejava fazer (King estava realmente traumatizado pelo "O Iluminado" do Kubrick). No decorrer das adaptações das obras do King para o cinema, temos algumas que seguiram muito bem o material original do livro e se tornaram adaptações cinematográficas bem fiéis; que o caso de obras como "Carrie" (1976), "It"(1990/2017/2019), "Misery / Louca Obsessão" (1990) e "À Espera de um Milagre" (1999). De acordo com a ideia/exigência de King, posso dizer que aqui temos uma adaptação cinematográfica em até certo ponto fiel com a obra original (por mais que tenha uns pontos que discordo). Assim como o livro, o filme também aborda a questão da morte, o significado da morte, a relação da morte com cada um dos personagens da história, o que dá a entender que muita das vezes estar morto pode ser melhor (como menciona o próprio Jud Crandall). E o interessante é exatamente todo esse contexto da história da família Creed, que aborda exatamente aquela ideia de que se mudar muita das vezes significa iniciar uma vida nova em um novo local, recomeçar, mas no caso da família Creed pode significar o começo do fim.
A história que o King constrói tanto no livro quanto no filme é surpreendente e maravilhosa, que logo destaca o grande mestre do terror que ele é, ao nos embarcar (juntamente daquela família) como uma espécie de passagem para o inferno em um local que propriamente nos remete a paz de espírito. E o mais intrigante é o fato do King colocar em sua história uma espécie de guia turístico para o inferno, que é o amigável Jud Crandall. Aqui temos outro ponto bem curioso e discutível, que o fato do peso na história que traz a participação do Jud, que a princípio ele só queria ajudar a filha do Louis para que ela não viesse a sentir o peso e a tristeza da morte de seu gatinho Church. Por outro lado ele sabia o que tudo aquilo poderia causar na vida do Louis e sua família, pois ele próprio já tinha passado por isso quando era jovem com seu cachorro. Essa é uma discursão muito inteligente que agrega ainda mais em todo o contexto da história, que é a decisão em você querer evitar a morte, ou não querer que uma criança sofra pelo fato da morte existir e ela não saber o seu peso e as suas consequências. Este é um tópico excelente.
Outro ponto que pode ser discutido é em relação às decisões de Louis. Obviamente ele faz escolhas terríveis durante todo o seu percurso. E quem vai julgá-lo? Quem vai apontar aonde ele errou? Afinal de contas ele era médico e acreditava no dom da vida e na desilusão da morte. Tudo que o Louis fez foi por amor a sua família, talvez da maneira errada e precipitada, mas fatalmente foi por amor. Pois certamente ele queria sempre manter a sua família ao seu lado, que vai desde o gato, o filho e a sua esposa. Exatamente nesse ponto temos uma obra que mergulha em um suspense psicológico, um terror psicológico, que aborda o peso da dor, do luto, do trauma, que discuti sobre a morte e a sua aceitação, em como nós enfrentamos a morte e as suas consequências, em como temos consciência de que o amanhã pode não chegar, que muita coisa pode acontecer num intervalo de tempo muito curto. Posso assegurar que este é um tópico que discuti a filosofia da vida, obviamente um raciocínio filosófico sobre a vida e a morte, e que é muito melhor abordado no livro do que no filme.
Sobre essa questão da filosofia da vida que é melhor abordado no livro, é um ponto que vale a pena ressaltar, pois no livro temos toda a construção da perda de consciência e sanidade do Louis, que o leva diretamente a agonia e ao extremismo, a tomar decisões precipitadas e radicais, é um processo que leva o Louis de encontro a total loucura. O livro constrói melhor os diálogos que aborda justamente toda essa questão da finitude da vida, e que no filme é feito de forma muito rápida e pouco abrangente, e que interfere diretamente no peso que a obra poderá nos causar. Este é um dos problemas de adaptar um livro com mais de 400 páginas em um longa-metragem de pouco mais de 1h 30min, pois obviamente a história no livro será sempre mais detalhada e logo, mais abrangente. No filme os acontecimentos são muito rápidos e não transmite o peso real e a profundidade psicológica daquela história, logo não consegue imergir o espectador na história como faz no livro, pois no livro temos construções e passagens que nos deixa incomodados e sufocados (como naquela cena em que o Louis vai desenterrar o filho). Isso não acontece no filme, inclusive esta cena que eu mencionei é feita sem nenhum peso psicológico, apenas como uma passagem obrigatória do roteiro.
E aqui eu preciso destacar dois pontos importantes do livro e que não foram bem adaptadas no filme:
1 - A participação da irmã da Rachel Creed (Denise Crosby) na trama, a Zelda (Andrew Hubatsek). No livro temos toda uma construção e desenvolvimento da Zelda, juntamente com o peso e o impacto que ela proporcionou na vida de sua irmã Rachel. Isso conta muito para todo o desenvolvimento da própria Rachel durante a história com sua família, e a forma como ela vê e sente aqueles acontecimentos em sua vida. No filme a Zelda é simplesmente jogada na história como uma obrigatoriedade de roteiro, sem nenhum desenvolvimento para quem não leu o livro pudesse entender quem é ela e o que ela significa na história.
2 - Decidiram cortar a esposa do Jud, a Sra. Norma Crandall, e usar o seu espaço na história com a empregada da família Creed, a Missy Dandridge (Susan Blommaert). No livro a personagem da Sra. Norma é muito importante no contexto da história do Jud e do próprio Louis. Temos aquela abordagem em torno do seu sofrimento com artrite, a maneira como ela faz parte da história em relação ao Louis como médico, sendo que até a sua morte foi um choque para a menina Ellie Creed (Blaze Berdahl). No filme ela é cortada da história e conhecemos o Jud morando sozinho em sua casa. Já a Missy Dandridge tem sua participação no filme, porém é bem curta, pois logo ela descobre um câncer e se enforca. Não sei os reais motivos que decidiram retirar a Sra. Norma do filme e deixar somente a Missy Dandridge. Também gostaria de saber até que ponto o próprio King concordou com estas decisões, já que pra mim são mudanças cruciais, e ele queria que a adaptação seguisse fielmente a sua obra original. Fica aí a dúvida!
Sobre o elenco:
Dale Midkiff estava praticamente estreando no cinema e até que ele conseguiu compor bem o personagem do Louis. Tudo bem que em determinadas cenas faltava nele mais a veia dramática e principalmente aquela sensação de extrema loucura presente no Louis do livro. Mas até que ele entregou um personagem aceitável.
Já o Fred Gwynne pegou a essência do personagem do livro. Eu diria que ele foi o que mais se aproximou do Jud do Livro, por ter aquele jeitão amigável, amistoso, logo após ser misterioso e muito intrigante.
Denise Crosby colabora bem com a história, tem uma participação ok com sua personagem e contracena bem com Dale Midkiff. Ela convence em algumas cenas mais dramáticas, que lhe exigia um algo a mais de sua atuação, e ela também foi bem.
Blaze Berdahl, com apenas 9 anos na época, é mais uma que acerta muito bem em sua personagem, conseguindo interpretar bem uma Ellie que se assemelha muito com o livro.
O pequenino Miko Hughes, com 3 aninhos, brilha como o doce Gage. E aqui fica muito claro que sua participação foi melhor no início do filme, já que nas partes que ele volta, é nítido observarmos que na maioria das vezes é um boneco em seu lugar. Sem falar que nas cenas em que ele começa a andar na casa matando, é claramente inspirado no clássico "Brinquedo Assassino", que havia estreado um ano antes, em 1988.
Brad Greenquist teve até mais espaço do que eu imaginava com seu Victor Pascow. Esse eu gostei bastante da sua participação, e sua maquiagem ficou muito boa pra época.
Curioso que a Zelda foi na verdade interpretada por um homem (Andrew Hubatsek). O motivo foi que os produtores não conseguiram encontrar uma mulher magra o suficiente para a personagem.
Sem esquecer de mencionar o próprio Stephen King, que aparece em uma pequena ponta no filme, interpretando o padre na cena do funeral.
Algumas diferenças entre livro e filme:
- A forma como Jud conhece a família é diferente do livro. Aqui ele chega bem na hora de pegar o Gage que estava indo para a estrada, no livro o jud chega bem na hora que o Gage havia sido picado por uma abelha.
- Até por uma questões lógica da época, no filme não mostrou o Gage em pedaços como no livro, em que ele estava até sem a cabeça quando o Louis abriu o caixão - por sinal a cena mais pesada do livro.
- No livro a Rachel chega até a casa do Jud com um carro azul, logo após ele ter ligado para ela e pedido que assim que ela chegasse que fosse primeiro na casa dele, no filme ela pega carona em um caminhão da Orinco e quando chega ela é surpreendida pela voz da sua irmã Zelda vindo da casa do Jud, e ai ela decide ir até lá.
- No final a Rachel retorna assim como no livro, porém no filme fica claro que ela mata o Louis com a faca, no livro isso não fica claro, já que o Louis está sentado em sua casa mexendo nas cartas do baralho, e ela chega por trás colocando a mão em seu ombro e o chamando de "Querido", com uma voz carregada com um chiado que parecia estar cheio de terra. Este é o final do livro.
- No filme, o final é com aquela cena bizarra em que o Louis beija aquela Rachel recém ressuscitada cheia de barro e sem um olho.
Curiosidades do filme:
O título original do filme ("Pet Sematary") é uma grafia que faz uma alusão de "Cemitério de Animais de Estimação" ("Simitério de Bichos"). Curioso que esta mudança na escrita original da palavra em inglês, que seria cemetery, foi uma decisão do King como uma alusão à escrita errada da placa do Cemitério dos Bichos feito pelas crianças. Mais curioso ainda que no Brasil o título do filme não seguiu esta grafia incorreta, para simbolizar a intenção do próprio King. Mas confesso que seria legal se o título do filme fosse "O Simitério Maldito", apesar das críticas e polêmicas que isto geraria.
A versão original do filme entregue aos executivos da Paramount foi considerada muito longa, então o excesso de filmagem teve que ser removido. Por isso ficou faltando várias abordagens relevantes do livro para o filme.
A cena final original era mais ambígua: mostrava apenas a morta-viva Rachel entrando na cozinha onde Louis está jogando paciência, deixando seu destino incerto (mais fiel ao livro). Embora a diretora tenha chamado esta opção de final "mais assustador, triste e trágico", porque o público sabe que não vai ser o que ele quer. Ela não vai voltar como sua esposa. Ainda assim o estúdio decidiu que era muito inofensivo e a pedidos, foi refeito para ser mais impactante graficamente e menos ambíguo.
Uma sequência, "Cemitério Maldito 2", foi lançada em 1992, com críticas ruins e bilheteria decepcionante. Embora faça referência aos eventos do primeiro filme, a sequência se concentra em personagens totalmente novos. Uma segunda adaptação cinematográfica foi lançada em 2019 com o mesmo título do original. No dia 06 de outubro de 2023, o serviço de streaming Paramount+ lançou um spin-off chamado "Cemitério Maldito: A Origem" (Pet Sematary: Bloodlines). Um documentário, "Unearthed & Untold: The Path to Pet Sematary", estreou em setembro de 2014 e foi lançado em janeiro de 2017.
"Cemitério Maldito" ficou em 16º lugar na lista da IFC das melhores adaptações para cinema e televisão de Stephen King, e também em 16º lugar no Top 30 de adaptações de King da Rolling Stone.
O longa-metragem arrecadou US$ 57,5 milhões de bilheteria com um orçamento de US$ 11,5 milhões.
A trilha sonora do filme foi escrita por Elliot Goldenthal (por sinal uma boa trilha sonora). O filme traz duas músicas dos Ramones: "Sheena Is a Punk Rocker" (1977) aparece na cena do caminhão que vai atropelar o Gage, e " Pet Sematary ", uma nova faixa escrita especialmente para o filme, que toca nos créditos. A música "Pet Sematary" se tornou um dos maiores sucessos dos Ramones, alcançando o quarto lugar na lista "Modern Rock Tracks" da Billboard, apesar de ser, nas palavras da AMG: "injuriada pela maioria dos fãs hardcore da banda". Eu adoro a música, é uma clássico atemporal.
Encerro afirmando que "Cemitério Maldito" é um clássico apoteótico do terror, um verdadeiro patrimônio da cinematografia dos anos 80, uma obra que marcou geração, que moldou uma geração, que em sua época obteve um grande impacto na indústria do cinema e consequentemente da música. O longa tem uma boa adaptação da obra original e está na lista dos melhores filmes tirados de uma obra-prima do mestre Stephen King.
[20/01/2024]