Carrie, a Estranha
"Carrie" foi lançado em 1976, dirigido por Brian De Palma a partir de um roteiro escrito por Lawrence D. Cohen, adaptado do romance epistolar de 1974 de Stephen King com o mesmo nome. O filme é estrelado por Sissy Spacek como Carrie White, uma tímida garota de 16 anos que é constantemente ridicularizada e intimidada na escola. O filme também apresenta Piper Laurie, Amy Irving, Nancy Allen, William Katt, P. J. Soles, Betty Buckley e John Travolta em papéis coadjuvantes. É o primeiro filme da franquia "Carrie".
"Carrie" foi o primeiro livro oficialmente publicado por Stephen King, sendo o responsável em apresentar ao público o autor revolucionário que passaria a ser reconhecido como o mestre do terror. Além de ser o primeiro romance de King, "Carrie" também foi a primeira adaptação da sua obra para o cinema. Devo dizer que o primeiro livro do mestre King é simplesmente fantástico, nos envolve em uma história que se passa nos anos 70 mas que em nenhum momento ficou datada, ultrapassada, permanece muito recente e bastante atual para os dias de hoje.
Não há nenhuma dúvida que "Carrie" é um dos melhores livros do mestre king, assim como também é uma de suas melhores adaptações até hoje. E olha que esta é apenas a primeira de mais de 100 produções cinematográficas e televisivas adaptadas ou baseadas nas obras publicadas de King.
Carrie White é uma adolescente tímida, solitária, oprimida, menosprezada pelas colegas e amedrontada pela própria mãe. Carrie nos mostra uma menina comum, com uma aparência fora dos padrões de beleza (que é imposto até hoje), tentando se socializar numa escola, com pessoas, para que não viva só na realidade da mãe, uma cristã ferrenha que vê pecado em tudo, a fanática religiosa Margaret (Piper Laurie). Este é o ponto que deixa "Carrie" como uma obra atemporal, exatamente por abordar o bullying, a opressão, a obsessão, a violência, o abuso, o massacre, o fanatismo religioso. De Palma nos entrega uma obra extremamente melancólica, dramática, niilista, soturna, nos expondo aos traumas enfrentados por Carrie. E olha que Carrie vivia em um verdadeiro tormento, tanto em casa, com uma mãe enlouquecida por uma fé religiosa deturpada, quanto na escola, onde era constantemente humilhada por suas colegas simplesmente por ter uma postura que a rotulava como "a diferente", "a estranha" (como o subtítulo do filme no Brasil). Este subtítulo se encaixa perfeitamente na história da Carrie, pois ter essa barreira e ser rotulada de "a estranha" não condizia com o seu verdadeiro desejo, que era justamente ser aceita, ser querida, ser uma adolescente comum e normal como qualquer garota da sua idade.
Por outro lado Carrie é diferente das garotas de sua idade pelo fato dos seus poderes telecinéticos, ou psicocinéticos. Carrie tinha um talento telecinético latente, comumente referido como TC. Esse dito "talento descontrolado" é uma característica hereditária, produzida por um gene que costuma ser recessivo, isso quando está presente e aflorado. A Telecinese é definida como a capacidade de mover objetos ou provocar mudanças em objetos pela força da mente (exatamente como Carrie fazia). A Telecinese é vista como um função empírica da mente, possivelmente da natureza eletroquímica. Dessa forma a história não há muito adorno, ela simplesmente acontece usando artifícios geniais para deixar o espectador por dentro do que seria a Telecinese, enquanto descobrimos junto com Carrie o que estava acontecendo com ela.
De Palma ficou intrigado com a história logo que leu o romance de King, o que logo o levou a tomar a decisão de pressionar para que o estúdio a dirigisse. De Palma faz constantemente homenagens ao mestre do suspense Alfred Hitchcock em seus filmes, geralmente usando a mesma decupagem de planos e mesmas locações. E em "Carrie" não é diferente, pois De Palma faz uma verdadeira ode à obra icônica e lendária do mestre - "Psicose" (1960). Podemos sentir "Psicose" em várias partes do filme, como a icônica musiquinha estridente da cena do chuveiro, onde De Palma utiliza algumas faixas em sua obra, e justamente por ele ter desejado que o compositor Bernard Herrmann tivesse composto a trilha sonora de "Carrie", porém ele faleceu em 1975, impossibilitando que De Palma o chamasse para trabalhar em seu filme. O nome da escola que Carrie estuda, Bates High Scool (no livro o nome da escola é Ewen), e a fábrica de carne, Bates Packing, são uma referência a Norman Bates, de "Psicose".
Como já mencionei anteriormente, "Carrie" é considerada como uma das melhores adaptações de uma obra de Stephen King. Porém, tanto De Palma quanto Lawrence D. Cohen optaram por usar uma certa liberdade criativa, optaram por fazerem algumas mudanças em relação à obra de King (o que é normal, afinal o livro sempre é mais detalhado e mais abrangente). O roteirista optou por uma narrativa mais linear, mais direta, mais conclusiva, o que deixou alguns detalhes de fora e outros foram mudados. De Palma por sua vez aumentou a violência e o horror em algumas cenas e diminuiu em outras. Por exemplo:
A forma como a mãe de Carrie morre no livro, que é causada por uma parada cardíaca causada pela própria Carrie. Já no filme ela morre atingida por vários talheres que Carrie lançou com o poder de sua mente, o que a deixou em uma posição crucificada, exatamente como a imagem que ela tinha em seu local de orações.
O final da história foi onde teve mais mudanças: no livro, o atentado contra Carrie que aconteceu durante o baile, quando derrubaram um balde com sangue de porco sobre ela, fazendo com que os seus poderes cinéticos fossem liberados numa descrição de fúria impiedosa e imbatível. Todo o ocorrido no baile desencadeou uma fúria incontrolável em Carrie, onde o incêndio atingiu não só o salão mas toda a cidade, como postos de gasolinas, lojas e outros estabelecimentos. Tomando uma proporção gigantesca, o que logo chamou a atenção dos bombeiros e outras autoridades das cidades vizinhas, fazendo com que todos se dirigissem para a cidade de Chamberlain pelo ocorrido. Ou seja, no livro King quis dar uma proporção maior para o final devastador da história de Carrie White. Tanto que a cidade fictícia de Chamberlain, no Maine, quase desaparece do mapa pelo fato da proporção atingida pelo incêndio. Morreram 440 pessoas, 18 estavam desaparecidas e 67 dos mortos eram alunos do último ano da escola.
Realmente esta cena emblemática do baile é diferente exatamente nesse aspecto: no livro a cena é mais colossal, mais furiosa, mais avassaladora, tem um massacre visual muito maior. Já no filme De Palma conduz esta cena exatamente com mais suspense do que matança, como se premeditando todo o terror que estava por vir exatamente na casa da Carrie.
Já De Palma teve uma outra visão para o final do seu longa-metragem, consequentemente menos caótica e mais imersa no terror, sendo que até a morte de Carrie é diferente. No livro Sue Snell encontra Carrie na rua com a faca cravada em seu corpo depois da luta com sua mãe, e ela morre ali mesmo. Já no filme Carrie morre quando sua casa é atingida por uma chuva de pedras e sucumbida (como por forças das trevas), onde logo em seguida temos aquela cena icônica da Sue (Amy Irving) indo visitar o local e sendo agarrada no braço pela Carrie. O próprio Stephen King chegou a elogiar a direção de De Palma, considerando o seu trabalho mais leve e mais artístico do que o seu próprio livro.
A atriz Sissy Spacek inicialmente não estava cotada para o papel de Carrie White, até que o diretor de arte - e também seu marido - Jack Fisk solicitou uma audição para a atriz. De Palma gostou tanto de Spacek que resolveu dar a ela o papel principal no filme. E devo dizer que De Palma acertou em cheio na escolha, pois Spacek é a personificação perfeita da Carrie do livro. Spacek consegue atingir todos os momentos de Carrie com muita excelência e com muita competência, pois ela ia da alegria ao pânico com uma facilidade absurda. Genial, uma atuação completamente perfeita de Sissy Spacek ao incorporar a melhor Carrie de todas até hoje.
Piper Laurie está em um nível de excelência tanto quanto a Sissy Spacek, pois é dela a figura de mãe autoritária, severa, ranzinza, aquela monstruosidade que sempre amedrontava a Carrie com seus regimes bíblicos doentios. Uma atuação completamente esplendorosa de Piper Laurie. Tanto Sissy Spacek quanto Piper Laurie receberam indicações de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante na edição 49º do Oscar.
Amy Irving fez o papel da amiga arrependida de Carrie com uma ótima participação. Nancy Allen performou muito bem ao incorporar a inescrupulosa e impiedosa Chris Hargensen. William Katt era o Tommy Ross, que fez um par perfeito com a Carrie durante o baile (aquela cena com eles dançando é belíssima). John Travolta novinho e no início da carreira fez o Billy Nolan. Um personagem muito louco, o famoso "porra loca", que assim como a Sissy Spacek, também personificou com perfeição o personagem do livro. E pra fechar a atriz Betty Buckley como Srta. Collins (no livro a Srta. Desjardin), que também atuou com perfeição como a professora de educação física que às vezes ajudava a Carrie em algumas situações.
"Carrie" se tornou um sucesso comercial e crítico, arrecadando mais de US$ 33,8 milhões com um orçamento de US$ 1,8 milhão. O longa é considerado amplamente como a melhor adaptação do romance entre os inúmeros filmes e programas de televisão baseados na personagem Carrie. O filme influenciou significativamente a cultura popular, com várias publicações considerando-o como um dos maiores filmes de terror já feitos. Em 2008, "Carrie" ficou em 86º lugar na lista dos 500 Maiores Filmes de Todos os Tempos da Empire. Foi classificado em 15º na lista dos 50 melhores filmes do ensino médio da Entertainment Weekly e em 46º na lista do American Film Institute, 100 Years...100 Thrills. A cena apoteótica e icônica do baile teve uma grande influência na cultura popular e ficou em oitavo lugar no programa de 2004 da Bravo, The 100 Scariest Movie Moments.
"Carrie" ganhou uma versão musical na Broadway em 1988 e uma peça off-Broadway de 2012, uma continuação em 1999 ("A Maldição de Carrie") e mais duas novas adaptações: para a TV em 2002, estrelada por Angela Bettis e com roteiro de Bryan Fuller, e para os cinemas em 2013, com Chloë Grace Moretz como Carrie.
"Carrie" é um filme completamente atemporal por todos os assuntos abordados na trama. Uma obra influente onde mescla um suspense e terror, com um drama e uma fantasia sobrenatural. "Carrie" vai muito além de um simples filme de terror, pois ele nos confronta com os nossos limites, com as nossas loucuras, com os nossos demônios, com os nossos traumas, com o nosso fanatismo religioso e com a nossa obsessão pela fé. Uma obra extremamente peculiar, pertinente, melancólica, sombria, densa, que pode ser bela, poética e assustadoramente trágica.
Um verdadeiro clássico dos cinemas. Uma verdadeira obra-prima dos anos 70.
[08/11/2022]