Vencedor de 8 Oscar e considerado por muitos "um dos melhores filmes de todos os tempos", ...E o Vento Levou narra a história de Scarlett O'Hara (Vivien Leigh) em meio à Guerra Civil americana. O filme de 4h de duração não só foi muito premiado como ainda figura na lista de maiores bilheterias do cinema mundial.
Mas, para além do status cult e de sua significância dentro do cenário cinematográfico - da mesma forma que permanece sendo o grandioso exemplar do que foi a Era de Ouro em Hollywood -, ...E o Vento Levou carrega um peso que não deve ser ocultado. Na verdade, ele nunca foi.
Mas quanto mais avançamos em questão de décadas, torna-se mais evidente que o enredo deste clássico tem muitas razões para ser condenado - especialmente quando damos atenção à figura de Mammy (Hattie McDaniel), que, assim como outros empregados de O'Hara, são tidos como "conformados" em serem meros escravos dedicados a servir.
Já faz anos que críticos e profissionais do meio apontam que o filme possui problemas que não têm a intenção de se esconder na narrativa. Por mais que coloque a jornada pessoal e afetiva da jovem Scarlett em primeiro plano, ele não deixa de encorajar o discurso sulista norte-americano a favor da escravidão e da Guerra Civil (ou Guerra da Secessão).
Logo nos créditos iniciais, com a imagem de escravos no campo e os letreiros dizendo "Aqui foram vistos pela última vez cavaleiros e suas damas, senhores e escravos", há de se concordar: ...E o Vento Levou romantiza uma fração da História levando em conta apenas os privilegiados dentro da lamentável situação. Nada mais, nada menos, é um retrato do orgulho norte-americano em perpetuar o horror, o preconceito e a submissão. E isso persiste até os dias atuais.
Por isso, é necessário entender os dois lados da moeda: quando eu digo que o filme é o maior exemplar da Era de Ouro, é claro que me refiro ao glamour inquestionável da produção, à trilha-sonora marcante e às atuações memoráveis. Mas a tal Era de Ouro também foi extremamente problemática dentro do cinema Hollywoodiano, com racismo, intolerância sexual e a dominação de estúdios para com suas estrelas figurando entre os principais aspectos mais negativos.
No caso de O Nascimento de uma Nação, "clássico" de 1915 dirigido por D. W. Griffith, o cinema já havia provado sua capacidade de ser uma ferramenta de reprodução do ódio e da intolerância. Tanto que, após a estreia do filme que exibe homens encapuzados batendo em um homem negro, a Ku Klux Klan renasceu nos EUA. Inclusive, este foi o primeiro filme a ser exibido na Casa Branca.
Em ...E o Vento Levou, há uma capa invisível de embelezamento que funcionou na época e, de certa forma, "engana" o espectador e funciona até hoje. Afinal, é por conta do tórrido romance de O'Hara com Rhett Butler (Clark Gable) que o filme ganhou o status de clássico. O problema é que toda a base do filme está amparada por um cenário que desrespeita os sobreviventes daquela época e seus descendentes, fazendo com que a normatização do histórico escravista norte-americano ecoe na atualidade.
Hoje, quando acompanhamos a HBO MAX retirando o filme de seu catálogo após a declaração do roteirista John Ridley (12 Anos de Escravidão) e depois recolocando-o com um aviso a fim de contextualizar a obra, a discussão entra em um ponto relevante: o apagamento de obras racistas fará com que o futuro seja diferente? Ou será que, de tão ofensivas, elas acabaram se tornando obras essenciais para que o passado não se repita?
"É um filme que, como parte da narrativa da 'causa perdida', romantiza a Confederação de um jeito que continua a legitimar a noção de que o movimento secessionista foi algo maior, melhor ou mais nobre do que foi - uma insurreição sangrenta para manter o 'direito' de vender e comprar seres humanos" (John Ridley)
É uma discussão complexa - até porque eu, a autora deste texto, não posso falar com propriedade o quanto o racismo me afeta pessoalmente. Contudo, é necessário levar em conta que a arte (o que inclui o cinema) é um espelho de seu tempo. Ou seja: se filmes como Green Book ou Histórias Cruzadas ainda são produzidos, abordando o racismo sob a ótica de uma pessoa branca, é preciso falar sobre e intermediar uma reflexão conjunta quanto à necessidade de inverter o olhar. Dar ênfase ao olhar mais honesto, dar voz àqueles que foram resumidos como coadjuvantes.
Por isso é tão importante trazermos filmes como O Nascimento de uma Nação e ...E o Vento Levou para os dias atuais. Encará-los como exemplares irredutíveis de um passado de quase um século que ainda teima em intervir no presente. Se eles são discutidos com tanta força nos dias de hoje, os motivos vão do incômodo em ver o que está na tela ao desejo de mudança.
Mas, se um filme, uma peça de teatro ou um livro representam a época em que foram entregues ao público, temos de levar em conta que suas temáticas formam um museu intangível. Visitá-lo não é uma tarefa agradável, mas essa ainda é a única forma de termos certeza (ou, pelo menos, seguir o exemplo) de que não devemos ser iguais. Nem mesmo com todo o brilho de uma era dourada capaz de nos confundir.