A triste notícia da morte de Agnès Varda, nos idos do fim de março, chegou repentina, tal qual as imagens que a cineasta belga acostumou-se a registrar e a captar — ou deveríamos dizer resgatar e capturar? — em seus ensaios audiovisuais, filmes de ficção e documentários surpreendentes e repletos de uma jovialidade ímpar. Porque mesmo aos 90 anos, a fotógrafa e diretora, uma das mais importantes artistas da sétima arte em todos os tempos, Varda continuava rodando como se tivesse acabado de começar a carreira, ou como se tivesse acabado de lançar sua primeira obra-prima: Cléo das 5 às 7.
De muitas formas, o íntimo drama estrelado por Corinne Marchand e gravado no calor do verão francês de 1961, mais precisamente do dia 21 de junho daquele ano, dia no qual a trama se passa, é um testemunho do que separava e também do que unia Varda e seus colegas da Nouvelle Vague, o radical movimento cinematográfico capitaneado por Jean-Luc Godard e François Truffaut que revolucionou o cinema. Porque enquanto Cléo das 5 às 7 é tão inovador quanto Acossado, por exemplo, em seu uso de uma narrativa em tempo real, o longa também é distinto por um elemento muito específico: a perspectiva feminina.
Via de regra, quase todos os cineastas que fizeram parte das fileiras da Nouvelle Vague eram homens, mesmo considerando o fato de que foi praticamente Varda que lançou as bases da corrente artística da nova onda francesa muito antes de Godard encantar o mundo. Foi mais precisamente em 1954, sem nenhum treinamento formal na sétima arte e egressa do universo da fotografia e da pintura, que a realizadora do ímpar penteado bicolor fez sua estreia no cinema: La Pointe Courte, obra que também anteciparia algumas das principais preocupações de Varda, como o embate entre realidade e ficção.
Este primeiro longa-metragem, assinado pela diretora em conjunto com os habitantes da cidade-titular, antecede as técnicas documentais de observação e filmagem que a artista belga empregaria em Cléo das 5 às 7, drama que segue os passos da cantora Cléo (Marchand) em um espaço de 1h30, percorrendo as ruas de Paris enquanto espera pelos resultados de um exame médico para descobrir se tem câncer ou não. Estofado por um quê de angústia e fatalismo e tratando a todo momento de reverter a objetificação das mulheres, o filme move-se como a vida, cheio de encontros inesperados — Cleo e o soldado, por exemplo.
São pequenos fragmentos e traços de quase improviso que acumulam-se aos eventos preparados pelo roteiro, que alterna entre espelhos, cartomantes e previsões de futuro. compondo um todo rico em significados e imagens, mas também potente em sentimentos. Essa talvez tenha sempre sido a maior qualidade de Varda, através de sua cine-escrita, dada a qualidade textual e poética de suas imagens e palavras: falar dos assuntos mais delicados, das ideias mais difíceis, com um tom de prosa, com aquele gostinho de conversa estimulante acompanhada por um bom café, no final de uma tarde preguiçosa.
A diretora belga, que concorreu à Palma de Ouro com este Cléo das 5 às 7 não evitava a tragédia e a dureza da existência humana, principalmente no que se refere à violência microscópica e psicológica sofrida pelas mulheres — As Duas Faces da Felicidade, Sem Teto, Nem Lei —, mas também sabia como ninguém buscar os pequenos prazeres da vida e fazer surgir as delícias dos mais ínfimos detalhes — Jacquot de Nantes e as obras da fase documental tardia, incluindo os extremamente universais e ao mesmo tempo pessoais Os Catadores e Eu, As Praias de Agnès e Visages, Villages.
É este equilíbrio agridoce que permeia todo o percurso de Cléo, que se recusa a se deixar transformar em uma prisioneira das opiniões e pressões alheias, assim como de seu próprio destino, ainda que este possa estar prestes a acabar a qualquer momento. É um filme, enfim, que aborda questões como a imagem humana e a opressão da sociedade em uma espécie de odisseia urbana, uma jornada quase espiritual pelas ruas da capital francesa marcada pela dúvida e pela angústia, conforme o mundo segue avançando apesar dos problemas da protagonista — e não seria exatamente esta a dor e a delícia de viver?
Essa tensão que ocorre logo abaixo da superfície aparentemente intocável e bastante privilegiada de uma cantora pop como Cléo, que teoricamente pode ter tudo o que deseja, faz parte da empreitada de Varda em dissecar as complexidades e os paradoxos da existência humana, e de constantemente refletir e pensar acerca do que nos separa das histórias que contamos — como a impresivível sequência musical, que nos pega de surpresa em meio à trama, prova. Cléo das 5 às 7 é um filme de extrema liberdade e delicadeza, assim como as reflexões que Varda fez sobre sua própria arte em seu melhor filme, o curta Ulysses.
Seu Visages, Villages, aliás, parceria com o estelar fotógrafo JR, não poderia ter sido lançado em melhor hora, tendo chegado no momento perfeito para fazer Varda ser conhecida nos quatro cantos do mundo, ampliando o conhecimento do público em relação à sua incrível filmografia. E como não se encantar pela vitalidade e pela genialidade de uma cineasta que, mesmo após tantos anos, continuou procurando formas de inovar, de surpreender e de, sobretudo, fazer seus espectadores rirem, lembrarem e sonharem com as histórias contadas por sua câmera, sejam as dos catadores de comida ou de uma cantora pop dos anos 60.
Sempre preocupada em denunciar a desigualdade social, repensar o significado das imagens, celebrar seu marido, o diretor de musicais Jacques Demy (Os Guarda-Chuvas do Amor), defender o feminismo e dar voz aos esquecidos, Varda, para nossa sorte, ainda deixou pronto seu Varda por Agnès, filme aclamado no Festival de Berlim e aprovado pela crítica do AdoroCinema: "Varda por Agnès se conclui com uma carta de despedida endereçada ao cinema, ao público, à Varda da juventude [...] Em sua exposição franca, Varda oferece um exercício de autoanálise como poucos artistas tiveram a coragem de propor".
Relembrar a imortal Varda, enfim, é o mínimo que podemos fazer por uma artista para quem a memória teve uma importância capital. Todas as homenagens são poucas para uma realizadora de tal calibre, cujas obras servirão para inspirar, acima de tudo, novas diretoras no universo da sétima arte. Sem Varda, o cinema perde um pouco de sua alegria e de sua capacidade crítica; por outro lado, a constelação de estrelas da arte ganha uma de suas mais brilhantes e geniais integrantes. E como as palavras falham, fiquemos com o grito "Viva, Varda!" e um dos muitos tributos feitos por JR à sua querida amiga: