"Este é o Oeste, senhor. Quando a lenda se torna fato, publique a lenda". Não é acaso algum que a sentença, uma das mais clássicas do cinema estadunidense, faça as honras de "diálogo de encerramento" de um faroeste, e um coestrelado, é claro, pelo astro máximo do gênero, John Wayne. Contudo, a choque entre verdade e ficção não é uma exclusividade de O Homem que Matou o Facínora, uma das obras-primas de John Ford — é um contraste que forma o cerne dos westerns, os longas americanos por essência, e instituição que ninguém mais, ninguém menos que Clint Eastwood viria a questionar em Os Imperdoáveis.
O primeiro contato do "Homem Sem Nome" com o roteiro escrito por David Webb Peoples, coautor de Blade Runner, o Caçador de Andróides, ocorreu no início dos anos 1980, mais de dez anos antes da concretização do script. À época, Eastwood acabara de rodar algumas de suas incursões iniciais para além dos faroestes e acabou por recusar comandar Os Imperdoáveis por acreditar que ainda não estava preparado para o trabalho, particularmente como realizador. No entanto, mesmo que inconscientemente, esta maturação também aplicou-se, de uma forma ou de outra, à sua persona de pistoleiro impiedoso.
O astro enfim assume o papel de William Munny, protagonista do faroeste revisionista, em 1992, quando já havia completado 62 anos de idade. Para todos os efeitos, consequentemente, o auge como intérprete, atingido entre os anos 1960 e 1970 — principalmente nos filmes de Sergio Leone (Três Homens em Conflito) e de Don Siegel (Perseguidor Implacável), mestres de Eastwood e cineastas para os quais Os Imperdoáveis foi dedicado — era elemento do passado. O ator estava focado, então, em seu próximo passo como diretor, sobretudo depois do jazzístico Bird, e naquele que viria a ser o seu último faroeste.
É como articulou o crítico Roger Ebert em sua análise sobre o longa: "Se o faroeste não estava morto, estava morrendo; o público preferia a ficção científica e os efeitos especiais. Era a hora de uma elegia". Mas o medo de repetir a si mesmo, de replicar suas conquistas alcançadas nos dias de glória do Velho Oeste nas telonas, moveu Eastwood em direção de uma desconstrução das características mais essenciais do western: a saber, a constituição mítica por trás das figuras e do maniqueísmo intrínseco ao gênero dos justiceiros das pradarias americanas.
Desde suas primeiras sequências, que ocasionalmente remetem ao visual dos neo-noirs, Os Imperdoáveis coloca em xeque a propagação de histórias como meio de transmissão oral de conhecimento e de criação de lendas, de memória. Na pele de Munny, o ator e diretor põe em pauta um diálogo de rica intertextualidade consigo mesmo: é como se este fazendeiro, que um dia foi um assassino e um notório fora-da-lei, fosse a evolução do cowboy solitário do passado, amadurecido e em busca de redenção por seus erros. No entanto, a questão é que, apesar dos pesares, a violência sempre acha um jeito de voltar.
Ela bate à porta do viúvo interpretado por Eastwood materializada na figura do fanfarrão The Schofield Kid (Jaimz Woolvett), um jovem que chega à propriedade rural de Munny com uma proposta, tentando resgatar o brutal matador que ainda vive no íntimo do agora criador de porcos: em uma cidade próxima, uma prostituta foi atacada e teve seu rosto fatiado, o que faz com que suas colegas de profissão coloquem uma recompensa sobre a cabeça dos dois bandidos que atacaram Delilah (Anna Thomson). Nas palavras do inexperiente atirador, Munny é "frio como a neve" e não sente medo ou fica nervoso com o revólver.
Mas isto é algo de tempos pretéritos, argumenta o fazendeiro — ecoando, é claro, o perigoso Blondie vivido pelo astro na trilogia de Leone —, que logo pergunta pelo nome do pretensioso e improvável caçador de recompensas. E em uma sacada genial do roteiro de Peoples, o personagem de Woolvett revela que se auto-intitulou The Schofield Kid a partir da marca de sua arma de fogo, que já teria matado pelo menos cinco pessoas. Contudo, apelidos, como todos sabemos, não são promovidos por aqueles que os carregam: são nomes que só ganham vida própria quando são dados por terceiros.
O que é interessante perceber, portanto, é que é The Kid narrando histórias, evidentemente falsas, acerca de sua pessoa. E, para convencer Munny, ele também aumenta o ponto do conto de violência contra a prostituta: segundo o jovem, os bandidos cortaram o corpo inteiro da mulher, e não apenas sua face. Ao tentar construir uma mitologia para si mesmo, o jovem, entretanto, não pode e/ou não tem a experiência suficiente para entender que as lendas são produzidas a despeito das vontades individuais. Que os mitos surgem por interferência dos bardos, dos trovadores e, mais contemporaneamente, dos jornalistas.
A figura do homem da imprensa, aliás, é crucial em Os Imperdoáveis, personagem este interpretado por Saul Rubinek, um inescrupuloso biógrafo e escritor que percorre os idílicos cenários do Meio-Oeste americano ao lado do bandido English Bob (Richard Harris), um matador de aluguel contratado pelos donos de ferrovias para caçar e matar chineses fugidos do trabalho nas linhas de ferro. Seu W.W. Beauchamp, e Bob consequentemente, são mais dois homens costurados por Peoples e Eastwood ao complexo e diversificado mosaico de indivíduos e narrativas que povoam o roteiro e a cidade de Big Whiskey.
O vilarejo do Velho Oeste funciona como o centro nervoso da trama: é lá que mora a prostituta atacada, lá que Bob transita e lá que Little Bill Daggett, o xerife aparentemente benevolente de Gene Hackman, exerce um governo de caráter autoritário, a despeito das aparências. E mesmo que Eastwood seja o claro protagonista desta obra — além de vencer o Oscar de Melhor Filme e de Melhor Diretor pela primeira vez em sua carreira, ele também foi nomeado à estatueta de Melhor Ator —, Os Imperdoáveis é todo de um genial Hackman, brilhante como um homem da lei que é, na verdade, mais um monstro de seu meio.
Ao inserir um conflito teoricamente deslocado da trama principal entre Bill e Bob, Peoples só dá mais um importante passo em seu mais relevante objetivo, jamais perdendo de vista seus questionamentos. O embate, antes de se tornar violento em uma muito tensa cena dentro da cadeia, uma das mais incríveis sequências filmadas por Eastwood, é intelectual: Bob é chamado de o "Duque da Morte" por Beauchamp em seu panfleto sobre os atos do assassino inglês. Bill, entretanto, desmoraliza o inimigo, e portanto seu mito, ao chamá-lo de o "Pato da Morte", em um trocadilho com as palavras inglesas "duke" e "duck".
E conforme o xerife descasca suas camadas, revelando sua real e cruel constituição em uma masterclass de ampliação de tensão e brutalidade, o roteirista sentencia: os mitos nunca são como pensamos. As lendas e os "grandes homens" nunca são como as narrativas que traçam suas trajetórias, para o bem e para o mal. E o próprio Os Imperdoáveis, por sua vez, não passa incólume: o esperado tiroteiro não é glorificado e só ocorre com 1h30 de projeção; cada morte acarretada pelo duelo é dolorosa; e o único homem a cavalgar em direção ao pôr-do-sol é Ned (Morgan Freeman), aquele que renega a violência.
A desconstrução do faroeste promovida por Os Imperdoáveis é, portanto, também uma desconstrução da moral, um destrinchamento do espectro cinzento da própria moralidade em si. "Merecer", como diz Munny, após seu retorno ao inferno no sensacional encerramento, frente ao moribundo Bill, "não tem nada a ver com isso". Erguendo-se sobre o maniqueísmo e o dualismo do gênero western como um todo, o longa de Eastwood encontra espaço para analisar e desconstruir o jeito americano em si, porque o "mito do Oeste" é o mito da América, como aponta Eric Hobsbawn em seu "Tempos Fraturados" (ed. Companhia das Letras").
É importante notar, por fim, que Eastwood não mergulha na corrente pós-moderna da época, que operava as suas desconstruções propostas pela via da paródia, pela via do esgotamento, uma cartilha seguida nos anos 1990 por cineastas como Quentin Tarantino e Robert Rodriguez. A fragmentação contida neste filme é de ordem muito séria e desafiadora porque trata com pura honestidade o ocaso de um modo de vida e de um gênero e porque entende que a ficção pode sim revelar a realidade — como descobrimos nas edições de Rede de Intrigas e de Verdades e Mentiras —, mas que os mitos frágeis são sempre insustentáveis.