A velocidade da História, contada pelos vencedores de forma desnorteante, atropela, ocasionalmente, as quedas, registrando somente os triunfos e as conquistas. Quase 40 anos após seu lançamento, o épico Kagemusha, a Sombra do Samurai é rememorado, e com justiça, por sua potência narrativa e visual; pelo excepcional uso das cores; pela criação de imagens belíssimas e assombrosas; pela proeza técnica de sua inesquecível e trágica cena final; pelos prêmios que venceu, como a Palma de Ouro, em Cannes; e por representar um ponto de virada e de redenção na carreira de seu realizador, o mestre Akira Kurosawa.
Mas o lado A já está posto; aqui, o que nos interessa é o lado B — e para nos ajudar a compreender a importância da "face oculta" de Kagemusha, a biografia é uma forte aliada. Peter Grilli, especialista em cultura japonesa e nas criações do cineasta de Rashomon, reconta a queda de Kurosawa em seu artigo para a Criterion Collection como uma sucessão de equívocos, desventuras e perseguições midiáticas — iniciadas após a complicada e extenuante filmagem de O Barba Ruiva, um processo que lhe rendeu a pecha de artista tirano e obsessivo — que levaram o diretor a tentar o suicídio, no fim de 1971.
Para além dos atritos com a imprensa, ávida por detonar toda e qualquer empreitada artística de Kurosawa, o cineasta ainda enfrentou uma decepção a nível financeiro quando a tentativa de fundar uma produtora mais focada na arte do que nos lucros abriu um verdadeiro rombo em sua conta bancária; foi afastado de Tora! Tora! Tora!, que seria sua estreia em Hollywood; viu Dodeskaden - O Caminho da Vida fracassar nas bilheterias; e ainda por cima encontrou recusas após recusas da Toho, estúdio que produziu todas as obras do realizador desde a sua estreia, em 1943, em financiar Kagemusha, seu tão sonhado épico.
Somados, todos os fatores transportaram Kurosawa para um lugar sombrio, de raiva e rancor. Eventualmente, estes sentimentos transbordariam o corpo, invadindo suas pinturas. Trabalhando em telas extravagantes, coloridas e imensas, o diretor preparou um storyboard de luxo para Kagemusha, que teve seu tom drasticamente alterado pela tragédia artística. De início, em sua raiz, o drama histórico aproximaria-se mais de uma comédia sobre o ladrão de quinta categoria que é escolhido para ser o dublê de um lorde japonês à beira da morte por causa de sua impactante semelhança física com o nobre daimiô.
Pintor de formação, Kurosawa acabaria concretizando seu retorno aos filmes de samurai e a um dos temas mais caros de sua carreira — o eterno embate entre realidade e ficção — por um viés amargurado, quase apocalíptico, como demonstra a memorável sequência em que o larápio sonha com seu sósia falecido. O resultado então foi um roteiro explosivo, simbolizado em imagens furiosas que desembocariam no corte final de Kagemusha, uma lenta e feroz meditação acerca da natureza do poder, da corrupção exercida pelo mesmo e da inevitabilidade do tempo em si.
Durante a produção — cuja verba seria estourada a ponto de dois admiradores de Kurosawa, Francis Ford Coppola e George Lucas, precisarem intervir para impedir a abertura de um rombo financeiro irremediável —, o cineasta ainda precisaria contornar a questão da substituição de seu ator principal — o lorde e seu sósia foram finalmente vividos por Tatsuya Nakadai — e recriar a Batalha de Nagashino, de 1575, encerramento que levou 2 meses para ser concluído e precisou de 5 mil figurantes. Mas contratempos à parte, Kurosawa prevaleceu, testando e desafiando os limites da realidade em duas frentes de ataque.
No filme, o cineasta, um dos mais inventivos compositores visuais da história da sétima arte, explora a questão do duplo, e investiga ambos os lados da tênue linha que separa o “original” de sua “cópia” — temática também explorada com genialidade pelo iraniano Abbas Kiarostami. Partindo de eventos reais do passado e apropriando-se de figuras verdadeiras da História do Japão — o clã Takeda e seu patriarca, Shingen —, Kurosawa toma a derrocada de uma poderosa família como a fundação narrativa de sua investigação do poder através de uma jogada de mestre: a subversão do problemático gênero biográfico.
Frequentemente, os filmes baseados nas trajetórias de personalidades ilustres prendem-se ao enfadonho esquema “nasceu-viveu-conquistou-morreu”. Mas recontar a trajetória de uma personalidade com a precisão de um retrato 3x4 não é garantia nenhuma de que a essência do biografado será traduzida. Um olhar rápido para as mais bem-sucedidas histórias do tipo — clássicos como Amadeus e Lawrence da Arábia — demonstra que o espírito de uma figura é melhor apreendido quando se busca um retrato impressionista, mais preocupado com as sensações e com o drama do que com os fatos.
Na maior parte do tempo, Kagemusha segue os registros do período Sengoku (período dos Estados Beligerantes, em tradução literal), época da história japonesa em que a nação nipônica foi marcada por uma guerra civil deflagrada entre inúmeros clãs pelo comando do país. O épico de samurais de Kurosawa, por sua vez, situa-se exatamente no ponto máximo da derrocada da família Takeda, uma espiral de desgraças que inclui a morte de Shingen — de acordo com fontes, seguidas pelo filme, alvejado por um atirador de elite — e a derrota acachapante do exército na derradeira Batalha de Nagashino.
Contudo, o que nos interessa aqui é justamente como Kurosawa constrói uma ficção em cima da realidade — no estilo dos ensinamentos de Verdades e Mentiras — para fazer de sua "mentira" (a história que narra) a verdade e acompanhar a trama de seu próprio longa. Assim, se na história oficial o clã Takeda é assumido por Takeda Katsuyori, filho de Shingen, logo após sua morte, em 1573, em Kagemusha, o daimiô é uma espécie de entidade imortal e segue líder do clã mesmo depois de falecido, eternamente representado por suas "sombras" — os dublês que sempre o interpretam em vida, como seu irmão.
Portanto, o que Kurosawa faz neste épico é nada mais, nada menos do que traçar a biografia de um homem que nunca existiu. O estúpido camponês interpretado por Nakadai, personagem cujo nome verdadeiro jamais é revelado, é uma projeção da ficção, claramente inspirada nos sósias que acompanharam e protegeram ditadores da política real, como o alemão Adolf Hitler e o russo Josef Stálin, e até mesmo ecoando o personagem principal de "O Outono do Patriarca" (ed. Record), uma das muitas obras-primas do autor colombiano Gabriel García Márquez, originalmente lançada em 1975.
Mas Kagemusha vai além. Porque este homem que nunca existiu, esse criminoso da mais baixa estirpe, quase um bobo da corte, é também o retrato de milhões e milhões e milhões de homens e mulheres que já povoaram e ainda povoam a face da Terra: é, em suma, a biografia dos manipulados. Ao investir na biografia de uma cópia, de um duplo, Kurosawa tece um comentário riquíssimo sobre a natureza, mas também da própria realidade em si. No fim das contas, o épico histórico é um estudo dos limites da realidade e de como ela, mais cedo ou mais tarde, seja como farsa, tragédia ou sátira, bate à porta.
Inebriado pela chance de comandar, o dublê rapidamente toma gosto pelo circo armado pelos conselheiros do clã Takeda, a novela que tem a oportunidade de protagonizar. Se de início tenta atestar que não é Shingen, o tempo cuida para que o trono exerça seu fascínio sobre o fantoche. E em um lance de pura genialidade, Kurosawa traz a realidade através do sonho: em uma terra estranha, sob um céu de cores vibrantes e bizarras, montanhas impossíveis e uma névoa misteriosa, o dublê vaga sem rumo, ora fugindo da imagem de Shingen, ora caindo de joelhos, impossibilitado de viver, de encarar o que está à sua frente.
Para o diretor japonês, é o sonho que pode explicar a vida, o incosciente que explica o consciente e é a ficção que, enfim, explica a realidade. Quando acorda da visão do lago escuro e da ressurreição de seu "original", o camponês mente, dizendo que viu um milhão de inimigos ao seu redor enquanto dormia. Mas a verdade é que para construir uma realidade de ficção, é preciso narrar bem o suficiente para enganar até mesmo as crianças — como na cena em que o neto de Shingen encontra o sósia de seu avô pela primeira vez. E quando a artimanha é fraca, é preciso encarar tudo aquilo que é concreto e inevitável.
Como o paciente pintor que era — são duas horas de filme, aliás, até que a narrativa "aconteça", por assim dizer —, Kurosawa acertou as contas com a realidade com seu Kagemusha. A última imagem do longa mostra isso melhor do que qualquer análise poderia: "Rápido como o vento, quieto como a floresta, feroz como o fogo e imóvel como a montanha", diz a flâmula do exército Takeda caída no oceano, submersa para sempre — em outras palavras: nem tudo é eterno. Nem mesmo as montanhas ou o fundo do poço do qual o diretor precisou sair para completar o projeto de seus sonhos.
Como filme em si, Kagemusha é devastador e pragmático, um conto de desespero acerca da tragédia que acomete o homem comum ao sucumbir à sedução das glórias vazias, das pompas e dos festejos. Mas, por outro lado, como a concretização do desejo maior de um artista formidável, um mestre de seu ofício que quase abdicou da vida no auge do fracasso, Kagemusha nos ensina os muitos limites da realidade, sejam aqueles marcados pela ficção, sejam aqueles marcados pelo tempo. Iniciando a última fase de uma carreira genial, Kurosawa nos provou que resistir é preciso e que tudo acaba. Até mesmo a mais dura realidade.