O ano de 1973 nos Estados Unidos foi marcado pela economia instável no país e pelo desenrolar de um dos maiores escândalos da política americana. Enquanto a inflação subia a níveis altíssimos que impactavam todos os aspectos da vida da população e o presidente Richard Nixon era cada vez mais implicado no caso Watergate que resultou em seu impeachment, é interessante olhar para o que Hollywood produziu neste período.
Três dos filmes mais importantes feitos na terra do Tio Sam há 45 anos foram um longa sobre a dificuldade de se expulsar um demônio (O Exorcista), uma comédia sobre trapaceiros (Golpe de Mestre) e um filme sobre uma tão sonhada liberdade (Papillon).
Será que o cinema proporcionou um escapismo crítico à realidade de uma nação? Talvez seja precipitado concluir isso, mas o fato é que a própria ideia de escapismo, em seu sentido mais literal, foi explorada pela sétima arte americana naquele ano de uma maneira forte o suficiente para ressoar até hoje.
(Papillon chegou aos cinemas no Brasil em 1974, quando o país vivia um período de restrição de liberdades causado pela ditadura militar, então também podemos fazer paralelos entre o subtexto do filme a realidade nacional naquele contexto.)
Com a união de forças criativas em plena forma, Papillon conquistou o público com uma história sobre a persistência humana em um contexto opressivo. A direção é de Franklin J. Schaffner, um cineasta que sabia muito bem como realizar longas-metragens com subtextos políticos e potencial de público, como fez em O Planeta dos Macacos (1968) e Patton - Rebelde ou Herói? (1970). O texto conta com o lendário Dalton Trumbo (Spartacus, A Princesa e o Plebeu), um dos maiores nomes de Hollywood a ser perseguido por suas opiniões. No elenco, Steve McQueen e Dustin Hoffman.
Além de todos os méritos individuais, o sucesso do longa-metragem surfou na onda do sucesso de seu material de origem. A produção é baseada no romance autobiográfico de mesmo nome publicado por Henri Charrière em 1969, que vendeu 1,5 milhões de cópias apenas na França, onde foi publicado pela primeira vez, e foi traduzido para 21 idiomas.
Na obra, Charrière narra sua história de vida e conta como foi injustamente condenado pela morte de um cafetão na França, um crime que alega ter sido armado para incriminá-lo. Sentenciado em 1931 a uma vida de trabalhos forçados na Guiana Francesa, Papillon (apelido de Henri, que significa "borboleta" em francês) passou 11 anos preso até conseguir escapar e recomeçar sua vida como um homem livre na Venezuela. Historiadores e jornalistas concordam que estes fatos são inegáveis sobre a vida do escritor. Outros, entretanto, tem sua credibilidade questionada desde o lançamento do livro. Há quem prefira considerar o livro de Charrière como um romance narrativo, não biográfico.
O autor manteve até o final de sua vida que o livro era fiel à sua experiência, mas depois foi comprovado que alguns dos eventos ali relatados nunca ocorreram com o célebre prisioneiro francês. Muitas das histórias teriam sido inspiradas nas vidas e relatos de outros prisioneiros. O fato é que a colônia penal francesa na Guiana era palco de abusos de toda a sorte e isso foi muito bem representado no filme de 1973.
O longa-metragem chocou o público por conta de uma cena em que o personagem de McQueen é obrigado a comer um inseto depois de ser submetido a uma alimentação insalubre. A prisão era um verdadeiro inferno nos trópicos. Quem tinha a sorte de conseguir escapar dos portões da cadeia e fugir pela mata geralmente era morto por animais selvagens, por mercenários ou de inanição. Pelo mar o risco eram os tubarões. Dentro da prisão havia uma série de abusos, doenças, privações e uma rotina de agressões e trabalho análogo à escravidão. Os franceses condenados a mais de oito anos de prisão não tinham permissão para voltar para sua pátria e eram obrigados a viver na colônia para sempre. Quem tentava fugir e matava alguém no caminho era condenado à guilhotina. Sem óbito, a punição eram dois anos na solitária (cinco para reincidentes, o que geralmente matava ou enlouquecia os detentos). Depois de duas tentativas de fuga, o preso era enviado para a temida Ilha do Diabo.
A história ganhou uma nova adaptação para os cinemas lançada no circuito brasileiro na última quinta-feira (3 de outubro). No novo Papillon, dirigido pelo dinamarquês Michael Noer, o filme tem Charlie Hunnam, de Sons of Anarchy, divide os holofotes com Rami Malek, de Mr. Robot.
Hunnam vive um Henri que, ao contrário do que acontece no clássico de 1973, é retratado a partir sua vida antes da prisão, como um ladrão de cofres em Paris. Malek interpreta o falsário Louis Degas, que é um alvo ambulante por ter levado parte de seu dinheiro para a Guiana na tentativa de garantir sua sobrevivência. Henri oferece proteção ao colega em troca de fundos para financiar sua tentativa de fuga e daí nasce uma amizade genuína.
Uma diferença entre os dois filmes que vale ser pontuada é maneira como a violência é retratada. "Pode-se discutir a equivalência da violência gráfica da versão de 2018 com a apresentada pelo filme de 1973. O sangue falso no clássico estrelado por McQueen parece datado para o espectador moderno. Em contrapartida, o filme atual investe em um nível de realismo gráfico, com direito decapitação, tripas fora do corpo e facadas convincentes. Há quem argumente que a violência do filme é um mero fetiche para atingir as sensibilidades de um público cada vez mais sedento por estímulos nesta direção. Mas mesmo as sequências mais sanguinolentas estão contextualizadas na atmosfera de ameaças que Papillon quer atingir — especialmente para fazer aflorar o sentimento de que é o instinto de sobrevivência que move o enredo”, diz a crítica do AdoroCinema. Há que se pontuar, entretanto, que mesmo com efeitos especiais mais robustos, não há nada tão visualmente chocante do que o encontro de Henri com um atravessador leproso, caracterizado com uma maquiagem impressionante.
Entretanto, há uma diferença ainda mais interessante de se pontuar no novo longa-metragem.
Hunnam e Malek não são McQueen e Hoffman, mas não decepcionam em suas atuações. Além disso, há uma interessante diferença entre o remake e o filme original. Da mesma maneira que a borboleta tatuada no peito de Henri simboliza um desejo de transcendência que não pode ser enjaulado, uma aspiração que não pode ser derrotada pela violência, uma poesia que não pode ser sufocada, a amizade entre os dois é retratada sob novos filtros na nova versão de Papillon.
Isso não quer dizer que o recente longa-metragem se compara ao trabalho de 1973. Falta originalidade ao projeto, que a todo momento se ampara nas diretrizes estabelecidas pelo trabalho de Schaffner e Trumbo. Revisar o que foi fato e o que foi mito na vida de Henri poderia ter sido uma oportunidade interessante a ser explorada pelo longa-metragem, mas o filme não surgiu para isso — embora haja até um momento em que o protagonista diz que "esta é a história de muitos homens" quando está prestes a publicar seu livro.
Mas no que se refere à amizade entre Henri e Degas, há, sim, um certo frescor em relação ao trabalho anterior. Talvez as discussões sobre como os estereótipos de gênero atingem os homens tenham impactado a forma como essa história foi contada em 2018. Noer permite filmar esta amizade como se roda um filme de romance, ressaltando olhares de cumplicidade, enfatizando os sentimentos fraternos que os protagonistas têm um pelo outro com uma trilha sonora emotiva, permitindo filmar os dois deitados juntos no chão de uma cela-masmorra. Esse tipo de afetividade, esse tipo de amor entre dois homens, mesmo apresentado de forma não-sexual, teria sido impensado décadas antes, especialmente envolvendo um nome de um prototípico cinema masculino como McQueen.
Papillon de 2018 não supera Papillon de 1973, um filme tão bom que, a princípio nos faz pensar que sequer precisava ter sido refeito, mas ao menos tem um insight interessante sobre amizade e afeto.