Existe um certo folclore em torno de artefatos culturais que exigem um esforço físico ou intelectual para serem apreciados. Algumas obras fascinam por seus insondáveis mistérios, como o incompreensível Manuscrito Voynich, o famoso "livro que ninguém consegue ler". Outras instigam pelo peso conceitual de uma ideia genial, como a composição 4′33″, de John Cage, uma peça musical que consiste no total silêncio. O mesmo John Cage também assinou a partitura de Organ²/ASLSP, que nasce sem indicação de quanto tempo cada nota deve durar e está sendo executada em uma performance em uma pequena igreja da Alemanha pelos próximos 600 anos, consolidando-se como a mais extensa obra musical já executada na história da humanidade.
A longa peça de Cage que faz uma música de rock progressivo parecer um toque de notificação no celular integra uma categoria de obras artísticas faraônicas por sua extensão. Na literatura, podemos citar Em Busca do Tempo Perdido, do escritor francês Marcel Proust, que tem mais de 9.609.000 caracteres em sua versão original (e mais de 4 mil páginas na versão em português). Na escultura, nada supera a estátua do Buda do Templo da Primavera, na China, 3,5 vezes maior que o Cristo Redentor. Você sabe qual é o equivalente dessas obras na sétima arte? Sinto-me feliz por dizer que sei.
Durante a cobertura da 12ª CineBH - Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, entre o final do mês de agosto deste ano e o início de setembro, tive a chance de assistir a primeira sessão no Brasil do épico argentino La Flor. Épico não no sentido estrito da classificação cinematográfica, mas épico por representar uma ambiciosa epopeia do diretor Mariano Llinás. (Leia a crítica do AdoroCinema para La Flor.)
Com 14 horas de duração, o desafiador projeto argentino é (até onde se sabe), o filme narrativo mais longo de todos os tempos. Por "filme narrativo", estamos deixando de considerar produções experimentais e documentários, como alguns dos trabalhos de Andy Warhol e projetos como Ambiance ou Logistics, que tem um mês ou mais de duração. Entre os documentários, aliás, há apenas um filme mais extenso que La Flor, o chinês Resan (The Journey, no título em inglês), lançado em 1987, com 14 horas e 33 minutos.
La Flor conta com seis episódios (sendo que o mais longo dura quase seis horas) e traz diferentes histórias explorados pelo prisma de diferentes gêneros cinematográficos. Com tempo de sobra em mãos e muitas ideias na cabeça, Llinás passeia do terror de baixo orçamento ao suspense de espionagem de escala global, transitando pelo melodrama musical, pelo cinema mudo, ficção científica, cinema experimental, drama de personagens e comédias do absurdo, da paródia e da autoconsciência. Em preto e branco e a cores. Em diferentes níveis de granulação de imagem e texturas.
Em comum a todos os episódios está o elenco, que é mais do que uma equipe de atrizes, mas também, de certa forma, o próprio tema do filme. Pilar Gamboa, Laura Paredes, Elisa Carricajo e Valeria Correa, formam a companhia La Piel de Lava, e são a alma e coração do projeto. A poesia do filme vem delas, do ato de observar a evolução das atrizes, o efeito do tempo em suas pessoas, a versatilidade de seus talentos.
Ao saber que iria assistir a um filme tão extenso a primeira pergunta que fiz a mim mesmo foi me questionar se suportaria a maratona. Como se preparar para algo assim, se nunca houve um filme narrativo tão longo? Mesmo se me propusesse a assistir temporadas seguidas de uma série em um mesmo dia a experiência não seria a mesma uma vez que existem mistérios que só se revelam na sala escura do cinema, um espaço de isolamento que diminui as distrações entre sujeito e obra.
Quando a programação da CineBH foi divulgada, descobri que o filme seria apresentado dividido em três partes, como ocorreu em outros festivais que exibiram a obra, como o Festival de Roterdã e o Festival Internacional de Cinema Independente de Buenos Aires (de onde a produção saiu consagrada). A primeira parte conta com dois segmentos, um sobre múmias e outro sobre a conturbada separação de um casal de cantores em paralelo à uma história envolvendo uma seita viciada na toxina de um escorpião. O segundo episódio, com 342 minutos, quase seis horas, é uma intrincada trama envolvendo espionagem internacional. O terceiro traz um filme metalinguístico sobre fazer um filme longo, uma refilmagem de Um Dia no Campo (1936) e uma adaptação experimental de um poema de Sarah S. Evans.
Entretanto, por integrar a grade de um festival de cinema onde as três partes de La Flor, que foram exibidas em três dias seguidos, se somavam à uma extensa programação, era certo que exigiria um certo esforço para conseguir acompanhar toda a projeção da obra argentina que é mais de quatro vezes maior do que o corte final de O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2003).
No dia em que a primeira parte do filme foi exibida no Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, no Centro de Belo Horizonte, cerca de 100 pessoas estavam na sessão para assistir a La Flor. No terceiro dia, havia um número um pouco menor, mas chamava a atenção o baixíssimo número de pessoas que tinham comparecido em todas as três sessões, sinal de que a maratona proposta pelo filme desafiou os gostos e também as agendas e a logística de boa parte das pessoas que se dispuseram a ver o filme, uma vez que as sessões terminavam tarde, perto de meia-noite ou já de madrugada.
Logo no primeiro dia, na sessão do episódio envolvendo a múmia sobrenatural, ouvi uma estranha frequência que não saía dos alto-falantes da sala de cinema. Não custei muito a perceber que se tratava de um potente ronco. Olhei para trás e vi que um espectador já havia sido vencido pela fadiga. A cena se repetiu algumas vezes ao longo dos três dias, mas não há como culpar ou julgar ninguém por isso por conta do ritmo do festival.
A própria produtora Laura Citarella, durante uma masterclass no festival, chegou a afirmar que não faria mal se o espectador dormisse por breves instantes ou deixasse a sala para ir ao banheiro ou tomar café. Sua fala não surgiu à toa. O caráter de "evento" em La Flor é ressaltado por uma escolha narrativa muito importante de Llinás. Os quatro melhores segmentos do filme não tem um final, não tem um clímax. Nota-se que não há uma expectativa por parte do realizador de que o espectador tenha uma visão utilitarista da ficção. Nem tudo vai ter que fazer sentido. Nem tudo tem que ter uma moral da história em La Flor. Descrevendo desta maneira, pode-se ter a impressão de que o filme se perde, mas a engenharia narrativa, dramatúrgica e conceitual do filme é tão bem desenvolvida que em determinados momentos você chega a desejar que o filme dure mais (apesar de também se sentir cansado, com fome, com vontade de fumar um cigarro ou um café em função do desafio, não por tédio).
Mas se o tédio não é uma armadilha (ao menos nos quatro primeiros segmentos do filme, assunto que exploro melhor na crítica), o caráter de "evento" em uma sessão assim ganha uma relevância difícil de ignorar. Por um lado, como espectador, me senti atraído pela engenhosidade da narrativa e pelo trabalho incrível das atrizes, mas nunca perdi totalmente a autoconsciência de estar ali sentado na sala de cinema por um longo período de tempo. Teria sido diferente se eu tivesse assistido as três partes da produção argentina fora da maratona de um festival? Não dá para saber. Mas como as quatro estrelas e meia de cinco possíveis no texto opinativo sobre o filme atestam, foi uma experiência que valeu a pena.
Mesmo com seus planos longos e fixos em muitas sequências, La Flor é muito diferente do chamado slow-cinema representado por cineastas como Lav Diaz. O citado gênero recebe dos apreciadores elogios por transformar o tempo em tema e tese de uma maneira que os filmes de 90 minutos não conseguiriam (o que o filme argentino também faz) e dos detratores a crítica de que sua proposta hostiliza suas audiências (acusação que não faz sentido no longa-metragem de Llinás).
Passar tanto tempo no cinema assistindo a um mesmo filme é também um lembrete da experiência comunal que é ver um filme nos cinemas. A cada intervalo de 15 minutos de La Flor (como foram seis intervalos no total, a sessão como um todo durou cerca de 15h30 ao longo dos três dias) era uma nova chance de conversar com outros jornalistas e críticos sobre impressões sobre o filme, sobre a melhor maneira de se acomodar na cadeira, sobre as reações da audiência durante a sessão, de bocejos a risos. Llinás já revelou em entrevistas que sua intenção ao fazer o filme foi criar uma experiência como ir a um festival de rock. As pausas da projeção são como os intervalos entre um show e outro no qual você ainda ficar processando o que acabou de assistir antes de voltar para mais uma atração.
Depois se imergir nas múltiplas histórias dentro das histórias no filme de Llinás e passar a achar brevíssimos filmes como Solaris e Stalker, aproveito para terminar o texto com uma frase de Andrei Tarkovski: "Uma pessoa vai ao cinema por causa do tempo: seja para perdê-lo ou para vivê-lo".