Minhas lembranças da primeira vez em que fui ao cinema permanecem intactas, ainda que com detalhes faltando. Foi em 1981, em uma exibição fora de época de Bambi, o clássico mais trágico da Disney. Não recordo onde era nem quem estava junto. Mas lembro de chorar com a morte horrível da mãe do Bambi. Passei a vida achando que ela tinha sido carbonizada em um incêndio, mas o YouTube me confirmou hoje que foi obra de um caçador malvado. Enquanto chorava, na profundidade existencial dos meus três anos, eu só conseguia pensar em como um bichinho daqueles iria sobreviver sozinho.
Fiquei marcado também por aquela sessão lotada de E.T. - O Extraterrestre a que fui com minha mãe no comecinho de 1983. Do que vi na tela, só me lembro de um pedaço especialmente assustador: quando o menino Elliot tenta fazer contato com a criatura deixando um rastro de balinhas coloridas no chão. Tive pesadelos por anos e não importava que o E.T. se revelaria um ser tão querido algumas cenas mais tarde. Meu medo do desconhecido começou aí.
Nessa mesma época lembro de ter ido ver Popeye, aquele que ninguém se lembra que o Robin Williams estrelou. Foi em um cinema gigantesco de dois andares e tela comprida que deixou de existir não muito tempo depois. Do filme em si, captei pouca coisa, era tudo confuso. Mas guardei a lembrança de estar feliz de estar ali, sentado a quilômetros da tela, ocupando toda uma fileira de poltronas com minhas primas e tios. E de comer pipoca, que até então eu não sabia que gostava tanto.
Fui crescendo, e os filmes também. Aos 5, implorei para me levarem para ver O Retorno de Jedi, que eu sentia já conhecer por causa do álbum de figurinhas que colecionava obsessivamente. Demoraram tanto para me atender que o filme saiu de cartaz. Não esqueço da decepção ao ser obrigado a ver o que estava no lugar, um certo Os Deuses Devem Estar Loucos. Não consegui entender por que as pessoas do filme adoravam uma garrafa de coca-cola que caiu do céu. (Só fui ver Jedi no fim daquele ano, em uma versão pirata em VHS conseguida na locadora do bairro.)
Minha “emancipação” cinematográfica começou aos 7, por acidente. Minha mãe levou eu e meu amigo para ver Os Goonies em um pequeno cinema de shopping. Na cena do primeiro encontro com o Sloth, o Guilherme ficou assustado e pediu para ir embora. Ela perguntou se eu conseguiria ficar sozinho e que me esperaria do lado de fora. Foi a primeira vez em que fiquei sozinho no cinema, e não esqueço de curtir muito aquela sensação única de medo e independência. Adorei o filme, mas o momento em si me marcou muito mais.
O cinema também me aproximou do meu pai. Ao lado dele apreciei e discuti os clássicos da época, como De Volta para o Futuro 2 e 3, Esqueceram de Mim, Uma Cilada para Roger Rabbit, Império do Sol e Duro de Matar 2. Mas não esqueço da vez em que fomos ver O Enigma da Pirâmide. A sala estava lotada e meu pai teve de sentar em um degrau no corredor enquanto eu ocupei a única poltrona vazia. Passei metade do filme olhando para a tela e uma boa parte preocupado com a falta de conforto dele.
E teve a vez trágica que meu pai levou eu e minha irmã para ver Dick Tracy em um cinema de rua, mas saímos na metade porque ele teve dores no peito e precisamos ir ao pronto socorro. Vi o filme inteiro na semana seguinte, mas só consigo me lembrar da tensão daquele dia sofrido quando passo em frente ao antigo cinema -- que nem existe mais, foi transformado em igreja, assim como aconteceu com muitos lugares legais da cidade.
Logo descobri que ir ao cinema com os amigos era mais legal do que com os pais. Com a turma da escola vi Indiana Jones e a Última Cruzada, 007 – Permissão para Matar, Batman, Robocop 2, O Jovem Einstein e tantos outros da virada da década, em sábados regados a lanchonete fast-food, bancas de revistas e caminhadas na Avenida Paulista. E teve o hype de O Exterminador do Futuro 2, que nos fez matar a última aula para pegar a primeira sessão possível na sexta-feira de estreia.
No último ano do colegial, inexplicavelmente consegui a proeza de ir ao cinema no mínimo três vezes por semana, aproveitando o preço baixo do ingresso na época. Vi obras maravilhosas e também um monte de porcarias, enquanto fortalecia amizades que carrego até os dias de hoje. Foi nessa época que iniciei o hábito de guardar os canhotos dos ingressos, o que continuo fazendo até hoje. A maioria o tempo apagou, mas não consigo jogá-los fora.
Quando comecei a atuar como jornalista, um dos meus primeiros prazeres foi celebrar o privilégio de ver filmes nas “cabines”, como são chamadas a sessões antecipadas exclusivas para a imprensa. De cara, a experiência memorável foi o combo Matrix e Star Wars - Episódio I em um espaço de quinze dias. Além de ir às cabines, passei a assistir aos filmes blockbusters também no dia da estreia, só para comparar as reações da imprensa com as do público “normal” (confesso, ver filme só com jornalista é muito chato).
Já faz tempo que ir ao cinema deixou de ser apenas um prazer para se tornar uma necessidade profissional, uma prática obrigatória para minha existência. Mais do que lembrar dos filmes a que assisti, hoje eu prefiro colecionar na mente as experiências essenciais que esse ritual me proporcionou e ainda proporciona. Os primeiros encontros pontuados pelo frio na barriga, boca seca e mãos desajeitadas. Risadas, beijos, reconciliações, tristezas. Aquela vez em que foi o único a gritar de susto e fiz a sala inteira cair na gargalhada. A primeira sessão sozinho após o fim de um relacionamento longo, banhada por lágrimas silenciosas que ninguém reparava. Tantas sensações únicas e irresistíveis de desprendimento, entrega, encantamento e sonho, em um momento tão meu, confortado pela fantasia e abraçado pela escuridão.
Ir ao cinema é estar feliz.
Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN, Herói, EGM e Nintendo World .