«?Apocalypto?, de Mel Gibson. Uma releitura da história?»
Existem elementos neste filme escrito por Mel Gibson e Farhad Safinia, que poderiam legitimar a afirmação de que também ele, na sequela de um conjunto de criações artísticas hispano-americanas do ?boom dos anos 60?s?, encontra-se associado a um conjunto de novas formas de discurso histórico, lideradas por um leque de autores do sul da América, e que Ainsa as tão-bem identificou em ?Reescribir el pasado ?, nomeadamente, de busca de uma identidade, de recuperar uma origem, de desmistificação da cultura indígena, etc.
O filme abre com uma citação do historiador e filósofo americano Will Durant (1885-1981) ? ?Uma grande civilização não se conquista de fora sem antes se ter destruído a si própria por dentro?. Este parece ser o propósito do filme, provar a tese de Durant e com isso, talvez, compreender melhor e justificar o presente da América do sul, o ser sul-americano, frustrando-se, com isso, à humilhação de um inglório reconhecimento de mérito pelo feito histórico da conquista, de quase todo um continente nove vezes maior e com o quíntuplo da população de Espanha, em pouco mais de vinte anos.
Os criadores desta obra cinematográfica poderiam efectivamente se enquadrarem naquele grupo de autores, não obstando para tal o facto de nenhum deles ser Hispano-americano, sul-americano ou carabeano, ou ter raízes com algumas dessas culturas.
À produção deste filme se precedeu um estudo rigoroso de fontes oficiais da história do império Maia, nomeadamente, do Livro Sagrado do Povo Quiché-Maia, designado por POPOL VUH, bem como das crónicas, relações e documentos oficiais do período pós-clássico, período antecedente à descoberta e conquista da América pelos espanhóis.
Entre essas obras é referida a ?Relación de las Cosas de Iucatán ?, do Frade Diego de Landa, manuscrito escrito por volta de 1556, cento e vinte e cincos anos após a queda da cidade imperial de Mayatán. Esta obra, escrita com o propósito de guiar os novos evangelizadores espanhóis pela América do Sul, é tida como um bom registo da cultura Maia pré-colombiana, com incidência em Iucatão. Descreve preciosamente, e com as características próprias de escrita das crónicas e relações da época (dirigidas a uma alteridade, neste caso aos evangelizadores São Franciscanos e conquistadores da América; pormenorização histórica tal como se estivessem vivenciado todos os momentos descritos, etc.), a forma como viviam naquele particular espaço geográfico os povos Maias no momento do encontro com os espanhóis, ou melhor dito, a forma como os ?espanhóis? fotografaram os hábitos e vivências dos resquícios existentes daquela civilização, naquele presente actual, longe do auge daqueles impérios, procurando sempre no decurso daquela relação de coisas uma justificação para a desertificação encontrada nas míticas e imponentes cidades imperiais, entre elas, as de Mayapán e da longínqua Chichen Itzá.
O fim da civilização Maia é vista no filme como o cumprimento de uma profecia proferida por uma pequena e enferma menina de Iucatão: ?A hora sagrada aproxima-se. Cuidado com o negrume do dia. Cuidado com o homem que traz o jaguar. Olhem aquele nascido da lama e da terra, pois aquele a quem ele os levar, destruirá o céu e apagará a terra. A todos vocês. E porá fim ao vosso mundo. O dia será como a noite e o homem jaguar os levará ao vosso fim? (Filme ?Apocalypto?, Mel Gibson).
Efectivamente, Landa conta «Que como la gente mexicana tuvo señales y profecías de la venida de os españoles y de la cesación de su mando y religión, también las tuvieron los de Yucatán algunos años antes que el adelantado Montejo los conquistase; y que en las sierras de Mani que es en la provincia de Tutu Xiu, un indio llamado Ah Cambal de oficio Chilar, que es el que tiene a su cargo dar las respuestas del demonio, les dijo públicamente que pronto serian señoreados por gente extranjera, y que les predicarían un Dios y la virtud de un palo que en su lengua llaman Vamonché, que quiere decir palo enhiesto de gran virtud contra los demonios.»
O jaguar, animal da mitologia Maia, era o deus do submundo, e comportava uma imensidão de significados e de crenças religiosas. O filme conta a história da captura e fuga da personagem principal, o índio com o nome homónimo a esse grande animal da cultura índia, Pata Jaguar, daquela civilização em queda, ausente de valores (maioritariamente ocidentais, é certo), onde se sacrificavam vidas humanas em nome de um todo-poderoso Kukulcan, alguém que tal como os espanhóis terá vindo de terras distantes da América (do poente).
A história da fuga e salvamento de Pata Jaguar e da sua família (que o aguardava escondida num Pozo profundo prestes a encher com as águas da chuva) é a concretização da profecia, levando consigo dois dos seus últimos percursores em direcção a uma praia, onde acabavam de atracar as primeiras embarcações espanholas em terras da Nova Espanha, prontos para conquistarem e aniquilarem todos os grandes impérios índios da América do sul (embora seja ?historicamente? aceite, que quando os espanhóis chegaram à América, já todos os grandes impérios indígenas tinham caído).
De facto, encontram-se em muitos textos da época referências a uma assumida culpabilização dos espanhóis, pela destruição e queda daqueles grandes impérios. Destruir os mitos e crenças indígenas era uma das preocupações dos conquistadores e colonizadores espanhóis. Nem sempre funcionava a regra do conquistador-disciplinador de que Hernando Cortés era percursor, daí a destruição a tão larga escala e a submissão dos grandes ?caciques? índios ao Rei de Espanha e à Igreja.
Algumas vozes chegavam mesmo a imputar aos espanhóis todos os males conhecidos em terras índias. O poeta do séc. XIX, Rúben Dário, por exemplo, faz em ?Colón? uma releitura da história dando uma imagem imaculada dos índios e da América antes da chegada dos espanhóis. A imagem utópica e mistificada do paraíso perdido, de inocência daquele povo indígena, serve aos propósitos daquele autor à época sobre a qual escreveu os seus poemas, escritos nos últimos anos do império colonial, época de saturação com o jugo e dominância espanhola.
Outros ofereciam uma perspectiva guerreira e bélica do povo indígena, suportada na maioria das crónicas e relações e tão-bem transposta para a ficção em ?Apocalypto?. Esta perspectiva, quanto a nós se enquadra melhor na ?verdade? daqueles textos, como serve melhor os interesses dos autores do filme, interessados em comprovar aquela teoria, de que os Maias caíram não por culpa dos espanhóis, com os seus duelos, guerras e febres, mas por culpa deles mesmos, se autodestruíram.
Em ?Apocalypto? os índios já padeciam de todos esses males. Os espanhóis nada trouxeram de novo e terão conquistado os índios porque estes se encontravam cansados do ciclo constante de intempéries, epidemias e guerras que vinham sofrendo e que Landa, minuciosamente descreve nesta sua ?Relación de las Cosas de Iucatán?. Até a reconquista de Iucatão pelo filho do Adelentado Francisco de Montejo, foi precedida de um conjunto de epidemias e intempéries que facilitou a reentrada dos espanhóis na província (Cap. XIV de ?Relación de las cosas de Iucatán).
Nas suas cartas de relação ao Rei D. Carlos V, Hernando Cortés considera que foi Deus que levou os espanhóis a descobrir estas terras indígenas de forma a evitar todo um conjunto de rituais e sacrifícios humanos. Relata imagens de corte de membros, extracção de órgãos, incluindo adultos e crianças, de corações ou entranhas, queimando-os de seguida e oferecendo o fumo aos seus ídolos.
Há testemunhos muito detalhados destas cerimónias sacrificais até à chegada dos europeus. Diego de Landa descreve as várias cerimónias que eram realizadas, especificamente as de sacrifício, em que arrancavam os corações. Estes sacrifícios tinham como finalidades, apaziguar os deuses, pedir melhores colheitas, pedir um bom ano, ou simplesmente oferecer sofrimento para apaziguar os deuses. Chegavam a derramar o próprio sangue para satisfazerem os deuses. Conta ainda Landa que «Algunas veces hacían este sacrificio en la piedra y grada alta del templo y entonces echaban el cuerpo ya muerto a rodar gradas abajo y tománbale abajo los oficiales y desollanbále el cuerpo entero, salvo los pies y las manos, y desnudo el sacerdote, en cueros vivos, se forraba com aquella piel y bailaban con él los demás, y esto era cosa de mucha solemnidad para ellos.»
Em Apocalypto, tão densa e pormenorizada narrativa macabra é obviamente poupada aos espectadores do séc. XXI, nada se mencionando quanto ao canibalismo, ou outras práticas condenáveis de acordo com os valores ocidentais. Por outro lado, Landa apresenta o adultério como um dos crimes mais severamente punidos entre os índios.
Era um povo fortemente supersticioso. Os espanhóis sabiam disso e usavam-no como forma de obter poder. Por muitos cronistas e conquistadores da época é referido que os espanhóis eram vistos pelos índios como deuses. Córtes chegou mesmo a ordenar que escondessem os corpos dos seus mortos, em terras onde essa crença existia, para que os índios não descobrissem que também eles eram mortais. Em Apocalypto, essa supersticiosidade do povo Maia é revelada à medida que a profecia se desenvolve no filme.
Dá-se, no filme, uma visão heróica dos índios bons, aqueles que vivem livres na selva, que respeitam e cumprem os valores ocidentais, entre eles o respeito pela vida, pela natureza, pelo bem comum. Os maus, a crueldade dos índios das grandes civilizações (em queda), revelam a impureza de uma dicotomia associada também ela a valores ocidentais. Uma vivência sociopata associada aos grandes aglomerados, com uma vivência paradisíaca/Colombiana, indefesa, associada à vida entre as diferentes tribos, dão o mote para a justificação do início da queda de todo um império.
O filme tenta ser fiel à fotografia da época imperial Maia. Os edifícios de pedra, a imensidão da aldeia, a devastação da paisagem, as pedreiras, os troncos das árvores cortadas e queimadas de forma a aquecerem as pedras e poderem-nas pulverizar para fabricarem o cal que usavam na colocação das pedras dos templos; as epidemias, fruto de má nutrição e falta de condições higiénicas, etc.
Por vezes, os criadores do filme, utilizaram, por questões de enquadramento, artifícios que melhor veicularam a mensagem que quiseram transmitir. Em termos de arquitectura é assumido pelos seus produtores o uso das imponentes pirâmides existentes no período clássico, nomeadamente, as de Chicén Itzá (cidades, que à data já se encontravam desertas há mais de 500 anos), por estas serem mais altas que as pirâmides achatadas do período pós-clássico (existentes, p.e., em Iucatão ou em Copán), permitindo, desta forma, pôr em segundo plano as medonhas personagens actuantes nos sacrifícios (incluindo o rei), terrificando-as ainda mais.
Tudo isto é transposto para o filme ao nível do simbólico. Mel Gibson e Farad Safinia não pretenderam, quanto a nós, fazer uma reescrita da história, mas fizeram, ou tentaram fazer uma leitura não ocidental sobre a mesma. Mantiveram-se fiéis a um guião escrito que teve como fontes, escritos dos próprios Maias e as relações e crónicas dos descobridores, conquistadores e evangelizadores espanhóis. O simbólico existe na aceitação de ambas as visões e na sua transcendência para um nível superior, nomeadamente, para o ponto de vista do autor e leitor do séc. XXI, do “El otro, el mismo”.
Eles não produziram nenhum barroco cinematográfico, tudo no filme é sequenciado e tem uma lógica ordenada e conduz o espectador a um aspirado epílogo. Se algum anacronismo histórico pode ser apontado a esta narração histórica, por exemplo, resulta da contemporaneidade imputada entre a chegada dos espanhóis e o momento da queda daquela grande civilização, como atrás se referiu. Não há neste filme grandes subversões da história às suas subversões conhecidas, este conta uma bonita história de amor (a procura de um novo começo), num momento verosímil da história da América do sul.