A PANTERA DE MINAS
Título dado pelo colunista social Ibrahim Sued, a referência pode significar tanto a personalidade forte quanto a maneira de viver a sexualidade com que Ângela Diniz mostrava para uma sociedade que não estava acostumada com tantos conceitos semeados principalmente a partir da segunda metade do século XX.
O movimento feminista, a liberdade sexual, a possibilidade de direitos iguais entre mulheres e homens bagunçavam a cabeça de muitos que seguiam toda essa onda, mas que no fundo, não possuíam a segurança necessária diante de tempos mutantes.
Para muitos, a questão era encontrar pessoas, se divertir, música alta, roupas chiques e aparecer nas fotos e capas de jornais e revistas.
Talvez com esse pano de fundo, Ângela Diniz (ou melhor, a atriz Ísis Valverde) começa o filme com tédio em meio à diversão. De cara, revela sem rodeios o meio em que vive. Socialite, sabia o que a rodeava.
Numa festa elegante, ela conhece Raul (ou Doca Street, papel vivido por Gabriel Braga Nunes) e ali a explosão de amor, tesão e paixão acontece sem cortes ou edições.
Sim, as cenas tórridas e sexuais entre ambos são íntimas, escancaradas, livres. Para quem tem filtros, isso pode ser um pouco chocante. Mas, nos anos 70, nem tanto. Fazia parte do contexto.
A escolha dos atores foi a dedo, pois tanto Ísis quanto Gabriel têm boas semelhanças físicas com as personagens da vida real. E um dos bons pontos do filme não está somente na intimidade vivida por ambos como a química entre o casal de atores funciona bem.
Sem se aprofundar tanto no que houve antes de conhecer Doca Street, o filme aborda a dor e a decepção dessa “pantera” que se sentia mais vulnerável quando distante de seus três filhos. Separada deles oficialmente, pois a justiça concedia na época o desquite. Seus filhos ficaram sob a guarda do pai.
De alma aberta, Ângela mergulha nos ideais do feminismo, embora não tenha sido uma defensora pública dele. Suas atitudes eram a prova disso: uso de decotes, consumo de bebidas como os homens faziam, postura pouco convencional e o desfrute da liberdade (total) como os homens exercem.
Para quem não conhece a biografia real de Ângela Diniz, a película dirigida por Hugo Prata congela os momentos vividos no último ano dessa mulher. Mesmo que seja muito pouco, o ritmo vai numa crescente de emoções onde, ora Ângela sofre com agressões, ora transparece a insegurança e o ciúme de Raul.
Em certo momento, os dois parecem tão colados e harmônicos que é difícil crer que vai terminar como terminou na vida real.
O filme adquire qualidades consistentes como boas locações, diálogos marcantes e a presença de personagens secundários que valem a pena conhecer como a descontente Tóia em relação ao seu casamento e a empregada Lili. Aliás, a história contada guarda um diálogo surpreendente entre Lili e Ângela, ambas com temperamento que nenhum homem da época poderia desconfiar.
Com pouco menos de 2 horas, a película se concentra num único ano da vida de Ângela Diniz, o de 1976. Mais especificamente nos poucos meses de relacionamento entre ela e Raul.
O mesmo Raul que larga tudo para trás, incluindo esposa e filhos naquele ano de 1976, em troca de uma paixão quente, vertiginosa e avassaladora. O ingrediente que conduz a discussão para a agressão e dessa para o desfecho que uma sociedade boquiaberta, mas conservadora, somente comenta e arregala os olhos.
Conduzindo as rédeas da casa num sossego tropical de Búzios, Ângela, sem querer, mostra não só o lado forte da personagem como a desenvoltura dela nos meios e nas festas sociais. Também ilustra a face de uma mulher em liderança. Essa mesma liderança feminina que custa chegar aos lugares mais eméritos como cargos altos em empresas ou entidades públicas. Problema persistente até hoje.
É bom ver o cuidado em recriar todo o cenário original: desde figurinos e objetos até a decoração. Uma atuação competente de quem se encarregou disso. É elogiável a direção de fotografia, pois as tomadas externas têm uma linguagem diferente dos ambientes da casa.
Certas cenas são concentradas nos rostos dos protagonistas como se o espectador aproveitasse a sensação de proximidade e de intimidade com o casal.
Muitos anos depois, a mentalidade brasileira passou por reformulações, dores e conscientização sobre assassinato de mulheres. Em quantidade, isso é recorrente – um fato lamentável dentro de uma sociedade ainda machista e violenta.
Ângela pode não ter esse papel, porém, com certeza, é um combustível que ajuda a aumentar as labaredas da fogueira. Eis toda a estrutura do filme que, embora se concentre nos últimos instantes da socialite, a cabeça lateja sobre coisas para se pensar: crime, justiça, feminicídio, legítima defesa, igualdade de direitos, frieza, ciúme, possessividade. Um caldeirão de elementos.
Fica a sugestão para a equipe do diretor Hugo Prata: fazer um outro filme da “Pantera de Minas”, pois, ao ler sua biografia, muita coisa pode ser contada e virar rolo de projetor nas salas escuras. Pena que faltou um pedaço. Um bom pedaço. Não deixa de ser um incentivo à produção audiovisual brasileira.
Parece que aquele gosto de algo a mais, ou melhor, o gosto de “quero mais” permanece na boca e na mente. Até que cairia bem pensar numa segunda edição ligada à primeira, só que voltando no tempo. Quem sabe quando ela se casa pela primeira vez e mostra não só lado “pantera”, mas o lado de uma pessoa com sofrimentos internos, obstáculos, impedimentos, sangrando por dentro enquanto sorri por fora. A pergunta que não cala é: como ela aprendeu a mascarar isso em meio a tanta gente chique e frequentando os melhores ambientes? Assim como Ângela Diniz, há milhares de mulheres no mundo atual que adotam a mesma estratégia para sobreviver ao que está em volta.