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    Retrato de uma Jovem em Chamas
    Críticas AdoroCinema
    2,5
    Regular
    Retrato de uma Jovem em Chamas

    Desejos transparentes

    por Bruno Carmelo

    O ponto de partida deste drama é particularmente interessante: acostumada às narrativas contemporâneas sobre sexualidade e identidade de gênero, a diretora Céline Sciamma volta ao século XVIII para investigar a manifestação da homossexualidade nas sociedades anteriores à liberação feminina. Existe um claro esforço para retirar da produção a atmosfera pomposa típicas dos filmes históricos: desta vez, as atrizes falam com a entonação e o traquejo das garotas do século XXI, enquanto as altas esferas do poder (os homens, por consequência) estão convenientemente ausentes. As mulheres são as únicas convocadas a esta reunião.

    O olhar se torna a porta de entrada para a manifestação do desejo. “Tomem o tempo de me observar. Observem as minhas mãos, a minha silhueta”, solicita a pintora e professora de artes plásticas Marianne (Noémie Merlant) quando posa de modelo às alunas. Em seguida, ela recebe a tarefa ingrata de fazer o retrato de Héloïse (Adèle Haenel), sem que esta saiba estar sendo pintada. Ela se recusa a posar, já que a entrega quadro selará um casamento indesejado. Por isso, as poucas mulheres do casarão passam os dias a se olharem, se espiarem. Marianne observa cada curva do rosto, da orelha e da boca de sua nova amiga, enquanto esta retribui o olhar, em gesto de curiosidade. Sciamma capta muito bem a sensualidade no movimento de ver e ser visto, de se expor conscientemente ou não para outra pessoa. Estamos no território do voyeurismo delicado, dentro das normas.

    A construção das imagens traz um importante elemento de surpresa. A direção de fotografia explora a textura digital mais nítida possível, em contradição com o que se esperaria de uma produção de época. Os ambientes são iluminados demais durante o dia, e escurecidos por completo à noite. Como resultado, percebe-se todos os detalhes da mansão decadente, com sua madeira corroída e pintura descascada, em óbvio sinal de sobrevivência ao tempo. A pintora e sua modelo involuntária utilizam os mesmos vestidos todos os dias, perambulando por cômodos praticamente destituídos de objetos. As direções de arte e de fotografia investem num tom artificial, anacrônico, que chama atenção excessiva para si mesmo.

    Para um drama tão interessado em texturas (da pele, dos vestidos, dos cenários, da tinta sobre a tela), a fotografia oferece um tom liso, asséptico, desprovido de mistério. O ambiente soa desconectado do século XVIII, ao passo que o casarão não trava contato com o resto do mundo. Uma importante cena ao lado da fogueira revela a existência de outras mulheres que vêm de lugar nenhum e desaparecem no dia seguinte. Sciamma une o passado e o presente sem se preocupar com a imersão do espectador no imaginário da época - só lhe interessa o material humano. Privilegiando a abordagem intimista, ela relega ao pano de fundo um contexto social tão importante para compreender a opressão sofrida pelas personagens.

    Ao mesmo tempo, o filme propõe uma série de símbolos poéticos simples, baseados sobretudo na imagem do fogo e dos quadros. A diretora parte de belas ideias, embora elas sejam sublinhadas com tanta insistência que perdem qualquer grau de delicadeza. Não basta imaginar que determinado quadro pegue fogo: é preciso que as chamas comecem no coração da figura pintada. Não adianta uma personagem recorrer a um aborto: a intervenção médica ocorre enquanto um bebê lhe acaricia o rosto. Não é suficiente o toque nas axilas servir de referência sexual: a câmera se aproxima do contorno da pele de modo a simular uma vagina. As metáforas são óbvias, assim como os diálogos explicativos entre as amantes. O ápice desta abordagem se encontra na cena final, muito funcional como escolha narrativa, mas tão extensa e exagerada na direção de atores que perde sua força.

    No elenco, Noémie Merlant e Luàna Bajrami, esta última no papel da criada, apresentam bom trabalho na representação vacilante do desejo. Já Adèle Haenel, uma das atrizes francesas mais talentosas de sua geração, soa deslocada no papel de Héloïse. A garota precisaria de uma construção igualmente nuançada, mas a atriz continua a imprimir a habitual brutalidade nos gestos e diálogos. É louvável que Sciamma não construa uma jovem frágil, mas Haenel força tanto a agressividade que perde a gradação necessária à descoberta dos desejos. Valeria Golino, intérprete da condessa, possui uma participação curta, mas marcante, ao dialogar sobre a beleza das mulheres com a pintora. O diálogo entre estas duas, aliás, provoca mais faíscas de erotismo do que qualquer diálogo romântico das protagonistas.

    O resultado é a transformação de um ótimo roteiro num filme de superfície graças às escolhas da direção. É difícil abordar algo tão multifacetado quanto a sexualidade humana (especialmente a homossexualidade feminina de séculos atrás) com tamanha frontalidade. Mesmo as tentativas de encanto - a imagem fantasmática de Héloïse no corredor - beiram o paródico pela mão pesada da cineasta. Ao menos, resta o olhar respeitoso ao corpo feminino, além de uma apresentação muito interessante do quadro mencionado no título, que adquire significados distintos uma vez que a história se conclui aos olhos do espectador.

    Filme visto no 72º Festival Internacional de Cinema de Cannes, em maio de 2019.

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