Um em um milhão: “Holy Motors"
O ator francês Denis Lavant dá vida ao inimaginável Oscar, um personagem na pele de muitos. O que parece um paradoxo é a descrição mais simples para o protagonista de “Holy Motors” (Imovision, 2012). O filme de Leos Carax narra um dia na vida do solitário Oscar, um homem que assume vidas paralelas e completamente distintas - chefe, assassino, mendigo, monstro e pai – a bordo de uma limunise guiada por Céline (Edith Scob). Eva Mendes, Kylie Minogue, Michel Piccoli, Leos Carax, Jean-François Balmer e Corinne Yam completam o elenco.
Mais do que interpretar os papéis, o homem vive cada um deles em sua plenitude. As roupas, as perucas e as lentes de contatos cumprem a função de demarcar simbolicamente a criação de novas identidades. A partir dos trabalhos entregues pela motorista, Oscar encarna uma vida nova, torna-se um novo sujeito.
Os gestos e a interpretação primorosa de Lavant permitem ao público (que resistir a quase duas horas de uma produção com fotografia escura e poucas falas) se deparar com vários sujeitos que se fazem protagonistas de uma história contínua, mas sem começo ou fim demarcado. É uma vida sem rotina; em um tempo caótico; sem lastro com o real; o simulacro em sua pura essência, como pensaria o pós-moderno Jean Baudrillard. Não é possível determinar quando e com qual frequência o protagonista dará vida a um personagem específico.
O mais intrigante é que em certo momento da trama é revelado que outras pessoas têm a mesma profissão de Oscar: o ator das circunstâncias. É como se a Paris moderna, cidade onde a história se passa, fosse habitada por vários personagens. Onde estão as pessoas reais? Cada um guarda no seu interior várias identidades? Sim. Cada sujeito é múltiplo (pai, filho, irmão, amigo, esposo) e assume essas identidades naturalmente, não no sentido único de se mascarar, mas também no de cumprir as demandas e atender às expectativas que cada papel social exige.
Não é possível determinar o que é real ou interpretação dentro da própria narrativa. Os vínculos e os traços que demarcam uma vida de Oscar são rapidamente abandonados e substituídos. São nove personagens em um mesmo corpo durante um único dia. Pelo que foi dito até aqui é possível perceber que “Holy Motors” não é uma produção convencional. No Brasil, segundo dados de sites especializados na sétima arte, menos de três mil ingressos foram vendidos. Mas é difícil comentar sobre a produção sem revelar os infinitos mistérios que ela apresenta: é um roteiro surreal.
A cada cena, Leos Carax reúne elementos narrativos e estéticos novos. A produção trabalha com momentos assustadores, fascinantes, sombrios e muito belos. O filme salta da triste vida de uma senhora que pede dinheiro em locais públicos para sobreviver para uma espécie de balé virtual. É tudo muito rápido e intenso.
Descrever as características ou a sequência de cada personagem seria um crime. Mas ao longo da produção, Oscar mata e morre várias vezes, ele exorciza seus demônios. É como se o protagonista estivesse preparado para enfrentar cada situação e vivê-la até o fim. As máscaras que o revelam ao mesmo tempo o protegem: são várias pessoas dispostas a vencer os problemas e a viver, da maneira que for possível, como pai, empresário, mendigo ou um senhor em seu leito de morte. Confuso, né? Mas esta é a sensação transmitida por “Holy Motors”, não saber ao certo onde tudo começa ou termina...
As identidades na contemporaneidade são múltiplas, fluidas e estão em constante mudança. A vida contemporânea é caracterizada por uma quantidade cada vez maior de apelos e estímulos sensoriais. O excesso seduz, assusta, desestabiliza. Diferentemente do Iluminismo, quando a identidade era tomada como algo fixo e imutável, na atualidade os papéis sociais não são claros e passam por um processo de constante redefinição. A construção das identidades é um processo simbólico e social norteado pelas representações. Em resumo, “Holy Motors” trabalha com a beleza e a dificuldade do ser. Cada um sabe quais máscaras carrega ao levantar da cama. O filme, além de incrível, é muito real.