Meus pais, quando se casaram, ainda jovens, tiveram que deixar para trás a sua cidade (Campina Grande-PB), para firmar residência em Natal-RN, onde eles poderiam ter mais oportunidades nas suas recém-iniciadas trajetórias profissionais. Na viagem, foram acompanhados por Nina, empregada doméstica da família, também paraibana, analfabeta, e que, ao decidir seguir meus pais, deixou também para trás a sua família (mãe, irmãos, um filho). Em Natal, meus pais constituíram família, tiveram três filhas, as quais foram cuidadas e criadas com muito amor e carinho por Nina. Minha mãe, que era bancária e tinha uma rotina de trabalho muito atribulada, não conseguia, muitas vezes, acompanhar tarefas escolares, preparar a farda do colégio, brincar com a gente, conversar... Nina é parte de nossa família. Mas, ao mesmo tempo, Nina sabia que existia um limite que ela nunca deveria ultrapassar.
A história que contei rapidamente aqui é a de Nina. Mas a trajetória dela e a de muitas outras empregadas domésticas anônimas foi retratada de uma maneira emocionante e singela pela diretora e roteirista Anna Muylaert no filme “Que Horas Ela Volta?”. Na estrutura narrativa do filme, é importante ressaltar o paralelismo que existe entre as figuras das mães do filme. Bárbara (Karine Teles), uma profissional de sucesso, que fez da profissão a sua prioridade e que não consegue se aproximar do filho Fabinho (Michel Joelsas); não é muito diferente de Val (Regina Casé), que deixou o Estado de Pernambuco para se mudar para São Paulo, com o objetivo de poder proporcionar melhores condições de vida para sua filha Jéssica (Camila Márdila), o que, obviamente, acabou fazendo com que ela se distanciasse da menina.
Val, assim como Nina, morava integralmente na casa de seus patrões. Por estar sempre ali, presente, acabou se transformando na referência de Fabinho. Por estar sempre ali, presente, provavelmente Val acabou transferindo todo o amor que daria para Jéssica para o filho de seus patrões. Inconscientemente, talvez, mas por amor à sua filha, para se manter fiel ao propósito que a levou à São Paulo, Val aguentava todo e qualquer sacrifício (o quarto minúsculo, apertado, quente, a rotina puxada de trabalho).
Nesse sentido, “Que Horas Ela Volta?” é um filme sobre a mudança cultural e social vista no nosso país em anos recentes. Val é o produto de um Brasil patriarcal, dominado por relações injustas de trabalho, por papeis sociais pré-determinados, por diferenças exacerbadas entre as classes sociais. Isso fica nitidamente explícito quando, treze anos após deixar Pernambuco, Val recebe a notícia de que Jéssica quer vir à São Paulo, assim como ela, em busca de melhores oportunidades, da chance de poder prestar vestibular em uma boa universidade.
Aí está a principal e notável diferença. Se, no Brasil patriarcal, a mudança vinha por meio do esforço físico, do trabalho duro e dedicado; hoje, o motor principal para a transformação social vem da educação, da instrução, das oportunidades iguais de acesso ao ensino. Jéssica revoluciona, não só o mundo da sua mãe, como também o mundo hipócrita dos patrões dela. Para Jéssica, que teve a sua mente expandida por meio do contato com professores que incutiram nela a necessidade da reflexão do mundo que se encontra à nossa volta, todos somos iguais e somos donos dos nossos próprios destinos.
Entender as nuances desse conflito é compreender a beleza que existe por trás de “Que Horas Ela Volta?”. O longa é um tributo aos avanços sociais vistos nos últimos anos, mas, além disso, é uma homenagem às Val e às Nina desse nosso país que, com seus sacrifícios, abriram as portas para que as Jéssicas do Brasil pudessem ter as oportunidades que têm hoje em dia. O que chama a atenção no trabalho de Anna Muylaert, nesse filme, além de trazer dignidade a essas personagens (que saem do mundo de invisibilidade para o de visibilidade), é que a diretora faz um retrato cultural e social muito particular do nosso país, de uma maneira universal – o que explica o grande sucesso que a obra tem obtido no mundo inteiro.