Talvez alguns se perguntem se Edgar Allan Poe, o escritor americano nascido no século 19, autor dos contos que inspiram e compõem cada episódio da trama da série A Queda da Casa de Usher, ficaria orgulhoso da nova versão de seu conteúdo produzida pela Netflix.
Como passaram-se mais de 200 anos desde a época em que Poe viveu e conheceu o que existia no mundo, talvez ele nem sequer compreendesse o que existe hoje, mas já em relação aos fãs atuais de suas obras, há um grande mérito que pode ser percebido nessa nova produção.
Com um elenco de peso que vai desde estrelas bem estabelecidas no cinema, como Bruce Greenwood, Mary McDonnell e Carla Gugino, até pessoas que provaram o valor de suas atuações em um histórico de séries de streaming de sucesso, como T'Nia Miller e Willa Fitzgerald, a minissérie criada por Mike Flanagan, diretor de outros sucessos como Doutor Sono, a continuação direta da versão cinematográfica de O Iluminado de Stanley Kubrick, e A Maldição da Residência Hill, permeia o gênero de terror tal qual Poe fazia em seus contos, de forma morbidamente apaixonada, mas não conectada diretamente ao núcleo das mensagens que busca transmitir.
Poe construía com eloquência uma sinergia, em muitos casos, perfeita entre o terror, o puro suspense sem conexão óbvia com o sobrenatural e o romance entre indivíduos e cenários. Na verdade, o fascínio que beira o mórbido, mas não adentra inteiramente nele caracteriza o gênero “gótico” ao qual Poe se empenhava em sua literatura, bem como é o trabalho muito bem elaborado por Mike Flanagan e a equipe envolvida no desenvolvimento da minissérie.
A Queda da Casa de Usher, antes de se tornar essa produção completa da Netflix, era um conto isolado de Edgar Allan Poe que descrevia os relatos compartilhados após a visita de um amigo à casa de Roderick Usher que, de diferentes maneiras, sucumbia a ruínas.
Quando a versão da Netflix foi divulgada, causava estranheza como uma produção inteira com vários episódios cujas histórias não tinham nenhuma relação com o conto independente A Queda da Casa de Usher de Poe se apropriara desse título de forma respeitosa ao autor sem criar modificações tão exuberantes do conto original ou sem ser incoerente com o público.
Fossem estratégias de marketing ou realmente a falta de criatividade para pensar em um nome novo que, então, englobaria o dito conto e outras variadas obras, a produção em si foi capaz de desbancar toda ou ao menos boa parte das dúvidas da excelente qualidade que podemos assistir na minissérie.
Englobando diferentes contos de sucesso de Edgar Allan Poe, os quais nomeiam cada um dos episódios, em uma única história onde o centro – ou melhor, o começo e o fim – são compostos pela narrativa do conto A Queda da Casa de Usher, em uma transposição para o mundo atual, onde há alta tecnologia, analogia crítica à crescente discussão sobre a terrível crise dos opioides desencadeada nos EUA, a mídia e o poder exacerbado e indiferente do capitalismo, a sobrecarga das relações e atuações trabalhistas, e a exibição gratuita – para não dizer exagerada – de referências e conteúdo sexual para todos os lados, a minissérie lançada em 2023 agrada tanto aos fãs das obras originais quanto uma nova legião de interessados pela pomposidade da produção em si e, provavelmente, ao legado no qual ela se baseia.
De um modo surpreendente em relação a como foi possível os produtores conseguirem conectar cada detalhe das diferentes obras a todo o desenrolar dos episódios, e com as atuações tão bem aplicadas, desde as figuras mais centradas e discretas até os personagens com índoles mais chamativas e caricatas, mas não necessariamente exageradas, A Queda da Casa de Usher consegue alto desempenho ao propor uma versão teatral de uma mistura muito bem arquitetada e modernizada de histórias de mais de 200 anos que não tinham relação alguma uma com a outra.
Ainda que cada episódio da trama tenha o título de um conto particular de Edgar Allan Poe, e muitos deles, em grande parte, realmente sigam o desenrolar de modo mais comparativo à sua respectiva história original – em especial “A Máscara da Morte Vermelha” e “O Gato Preto” – um dos vários pontos positivos na minissérie é realmente a imersão profunda que a produção teve no início para fazer, justamente, cada recurso narrativo de cada história ser devidamente bem posicionado na nova construção de uma narrativa unificada e coerente com cada elemento tendo significância e lógica nos espaçados momentos da história e não apenas nos episódios de seus respectivos contos base, se desdobrando ao longo da totalidade dos seus episódios com momentos e referências sutis e bem elaboradas de citações, nomes, cenários e até personagens por inteiro.
O modernismo construído na série, em certos momentos é capaz de aguçar ainda mais alguns dos recursos que estavam presentes nas obras originais. O empenho mais que notável, mas agora mais realista e inclusivo do famoso detetive Auguste Dupin (precursor de detetives na literatura, antes mesmo de Sherlock Holmes), o contexto mais crível atualmente do envolvimento dos macacos vindos de Os Crimes da Rua Morgue e a própria origem e existência da riqueza da família Usher – de fato, a “Casa Usher” – uma dinastia imperialmente estabelecida no ramo farmacêutico, prestam uma obra audiovisual que tem na sua desenvoltura tramas e atuações intimistas até cenas grandiosas de exibição de dor e também de arrependimento.
Passando por diálogos e frases de efeito vindas dos textos de Poe de forma íntegra até discussões que remetem a seu texto, mas são falas originais, modernas e, inclusive, menos maçantes, ainda que positivamente intelectuais, a minissérie de 8 capítulos sabe conciliar bem os seus momentos de atenção aos diálogos mais íntimas com as cenas de grande movimentação e agitação que ocorrem nos palcos dos núcleos familiares da casa Usher, com sua cobiça, sua culpa, luxúria e burnout.
Fazendo tal como Poe fazia, a obra tem seus sustos e sua dose relativamente leve de descrição de escatologia, incluindo as tão requeridas cenas de jump scare, que até brincam com elas mesmas em alguns episódios, mas sem se deixar satirizar ou mesmo fugir do gênero principal, a construção da elegância no suspense gótico da narrativa. Veja bem, mesmo para quem nunca leu os livros de Poe, não há um suspense único com reviravoltas monumentais que te farão cair da cadeira.
Poe não se atribuía ao gênero de escrita seguido por Agatha Christie, a chamada rainha do suspense, por exemplo, e assim como ele, esse empenho atual de Mike Flanagan não se dedicam necessariamente à um plot twist ou momentos únicos de revelações extremamente tensas e não imaginadas com a conexão genial de inúmeros pontos ocultos, mas sim à uma forma realmente engajante, entretida e informativa em um nível reflexivo de se manter seguindo contando uma boa história com todas as suas angústias, romances, seu macabro e seu humor ácido.
Os episódios de A Queda da Casa de Usher trazem o soturno do século 19, a modernidade do século 21, incluindo todos os seus luxos e horrores, uma homenagem respeitosa e interessada às obras do escritor americano Edgar Allan Poe, avisos sociais, econômicos e até religiosos sutis e outros mais escancarados ao público que os assiste, cenários e atuações irreverentes e uma desenvoltura particular que deixa apenas a desejar na quantidade de tempo presente na série, fazendo aos telespectadores encantados pedir por mais releituras como essa dose tão saborosa de entretenimento e reflexão que é a minissérie – não consuma tudo de uma vez ou confunda erroneamente o sabor com o de um Amontillado.