É fato que vivemos um bom momento para as animações. A popularidade dos desenhos animados adultos é alta e as animações para um público jovem estão abordando temas maduros, complexos e controversos que são considerados inapropriados para crianças ou adolescentes. A indústria da animação está colocando fé nas animações. The Midnight Gospel, a mais recente série de Pendleton Ward, o mesmo criador de Hora de Aventura, comprova isso: uma animação produzida pelo maior serviço de streaming de filmes e séries do mundo, a Netflix. A arte de animação é vista e consumida com os mesmo olhares do cinema, da literatura e do teatro: uma arte complexa que também pode contar histórias complexas e abordar temas complexos.
The Midnight Gospel não só é possível no século XXI por causa da ascensão da animação como um novo olhar no mercado do entretenimento, mas também por causa do fenômeno de transmídia existente na pós-modernidade, onde áudio, imagem e vídeo deixam de ser formatos paralelos e passam a ser complementares. No caso da animação de Ward, isso acontece com a junção de animação e podcast (na verdade, o desenho animado foi baseado no podcast de Duncan Trussel, humorista que dá voz ao protagonista Clancy). The Midnight Gospel só é possível em um mundo frenético onde a informação é algo vivo e que se instala na arte e no entretenimento através do trabalho conjunto entre mídias e da metalinguagem (além das inúmeras referências a cultura, história e filosofia que são jogadas nos episódios, da mesma forma como ocorre em Rick and Morty, por exemplo).
Em 2010, Pendleton Ward estava fazendo seu trabalho mais famoso, Hora de Aventura, da Cartoon Network, depois de apresentado um projeto piloto a Nickelodeon, uma das principais concorrentes do canal da Warner Bros. Neste período, o desenho animado foi considerado frenético e original por causa de sua fantasia e ficção, fortemente inspirados em filmes de Hayao Miyazaki, mestre da animação japonesa e do Studio Ghibli, jogos de RPG e obras antigas da própria Cartoon Network como Flapjack (quando Ward já trabalha) e As Incríveis Aventuras de Billy e Mandy, além, obviamente, de abordar tabus como homossexualidade, relacionamento, morte, insanidade mental, etc. Exatamente após 10 anos, em um intervalo de tempo onde o discurso de quebra de padrões e tabus é cada vez mais aceito, juntando com o crescimento de popularidade dos chamados "desenhos adultos", The Midnight Gospel surge com temas como drogas, budismo, espiritualidade, psicologia, filosofia e, principalmente, morte, em um momento em que a sociedade (se diz) mais aberta do que há dez anos atrás.
A série da Netflix aborda tais temas que unem a parte sonora do podcast de Duncan com a animação de Ward através da transposição de um formato sobre outro (mesmo que ambas aparentam ser, de primeira análise, opostos), mostrando certa naturalidade da própria parte em abordar temas controversos e complexos através de um método que tem tudo para dar errado, principalmente pelo fato do audiovisual (cinema, animação, televisão, etc) necessitarem de roteiros para criarem suas histórias e diálogos enquanto o podcast de conversas de Duncan (assim o brasileiro Flow Podcast) seja um método de conversar fluídas e improvisadas sem nenhum tipo de preparo formal Tal audácida da séria demonstra como as atuais gerações querem acabar com os tabus pré-existentes na sociedade; uma delas é a morte, uma das mais comentadas pela animação (sendo que, inclusive, o próprio título da obra faz referência a essa). "Midnight" (meia-noite em inglês) pode facilmente ser interpretado como uma simbologia para o ciclo da morte, onde se nasce, cresce e morre para depois nascer de novo e assim sucessivamente. Mesmo que os episódios falem de quaisquer outros assuntos, o tema "morte" estará no meio de alguma discussão filosófica, independente do contexto.
Os dois últimos episódios da série (sete e oito), ainda em relação a temática "morte" como objeto de análise da animação, tem características especiais em comparação com os outros seis episódios da série, pois essa abordagem muda totalmente de rumo.
O episódio 7 colocou Clancy, literalmente, para ter uma conversa com a morte, que se manifesta em um corpo físico, abandonando a passividade de episódios antigos e sendo uma existência ativa que fala, anda e pensa como Clancy, nascendo da ideia da morte como algo natural do ciclo da vida e não demoníaco e demonizado como é representado em algumas culturas (principalmente a judaico-cristã ocidental). O oitavo episódio é um dos mais importantes da série (se não o mais importante) não apenas porque Clancy/Duncan conversa com sua mãe antes dessa morrer meses depois, mas pelo fato do personagem (e também de seu dublador) colocar em prática todas as reflexões que então havia fazendo. Sabendo que sua mãe irá morrer em pouco tempo devido a complicações de um câncer, Ducan Trussel/Clancy experiente na pele o que é aceitar a morte depois de falar 7 episódios sobre isso.
The Midnight Gospel mostra que ficção e a fantasia podem ser reais, e que a realidade, da mesma forma, também pode ser vista com a magia e subjetividade da ficção. Por trás do surrealismo da animações, existem pessoas reais trazendo ideias e conceitos reais, incluindo desde cientistas a criminosos condenados à morte. Enquanto os entrevistados trazem seus argumentos e reflexões, uma série de elementos surreais e fantasiados são jogados em sua tela. O contraste entre realidade e ficção é a união entre animação e podcast de The Midnight Gospel. A animação transforma o podcast em algo mais imaginário enquanto o podcast transforma a animação em algo mais real, transformando a fronteira entre realidade e fantasia e ficção e verdade em uma leve linha tênue.