Beastars, série de anime lançada em 2020 pela Netflix, é um cenário que, algum tempo antes, já havia sido popularizado no filme Zootoopia (2016), da Disney, uma sociedade formada de animais carnívoros e herbívoros das mais variadas espécies, incluindo aves, mamíferos, répteis etc., convivendo entre si em harmonia (ou não). Porém o anime CGI (animação computadorizada) produzido pelo estúdio Orange está longe de ter um público infantil como alguma produção feita pelos estúdios Disney ou Pixar. Pelo contrário, é uma obra que, além de conter um certo nível de violência (gráfica e sugestiva), faz um abordagem sobre os conflitos de grupos e classes distintas que lutam pelos próprios interesses pessoais, gerando uma fragilização através do velho discurso de “nós contra eles”, e essa polarização entre as espécies gera consequências negativas para ambos os grupos: os herbívoros vivem em um constante sentimento de medo e apreensão na presença de qualquer carnívoro, enquanto estes sofrem com a criminalização e o preconceito contra sua espécie, vistos como “naturalmente violentos e agressivos” ou “assassinos em potencial”, criando um sistema de segregação que se espalha em diversos ambientes do colégio como os dormitórios, clubes e até grupos de amigos e colegas. Essa polarização entre espécies é algo bastante contraditório dentro da sociedade do Colégio Cherryton (onde se passa o anime) pois, ao mesmo que esses conflitos ocorrem, existe um grande por parte das instituições a ideais como união, paz, harmonia, diplomacia, igualdade e integridade entre as espécies, virtudes que são simbolizadas e representados na figura de Louis, o cervo vermelho, a principal figura de liderança do colégio (e o mais propício a se tornar o próximo “beastar”). A situação apenas piora quando ocorre o assassinato de Tem e, a partir dali, o protagonista Legoshi, o lobo cinza, necessita solucionar o mistério do crime, além de lidar com seu lado selvagem que pode afetar tanto seu relacionamento com Haru, a coelha branca anã, quanto com o restante da sociedade, que contêm, mesmo indiretamente, um discurso de criminalização contra os carnívoros e seus instintos naturais.
Através de Legoshi, vemos o indivíduo lidando e combatendo um lado negativo e sombrio para não o deixar transpor o seu lado positivo, amigável e gentil, justamente as qualidades que, além de serem aquilo que o personagem tanto busca, é o que mantem a sua integridade social. Porém, muito mais do que uma abordagem sobre como lidamos consigo mesmos, Beastar também faz abordagem sobre como se lida com o outro, com aquilo que é diferente ou “estranho” (mesmo que esses conceitos sejam trabalhos na obra muito mais como construções sociais do que uma característica natural). Os dois principais relacionamentos entre carnívoro e herbívoro do anime são entre Riz e Tem e Legoshi e Haru, e ambos os casos contém semelhanças na forma como essas relações são sustentadas. Existe uma mistura entre os instintos dos carnívoros (o natural) e um sentimento de afeição (o social), seja a amizade, no caso de Riz e Tem, seja o romance, no caso de Legoshi e Haru. Da mesma forma, tanto Legoshi quanto Riz “usam” seus instintos de predadores como forma de se interligarem emocionalmente como Haru e Tem, respectivamente. Porém, o anime deixa óbvio que o lobo e o urso enxergam esse instinto é completamente oposta: enquanto Legoshi desenvolve o afeto íntimo com Haru para substituir e amenizar seu lado de predador,
Riz acredita que seu instinto natural e seu afeto por Tem significam a mesma coisa, argumentando que a devoração do amigo foi, na verdade, uma “prova de amizade” por ele.
Diferente desses dois personagens carnívoros, onde a maneira como ambos lidam com o “outro” e o “diferente” é diretamente (se não completamente” ligada com o ato de lidar consigo mesmo, esse processo, na perspectiva do herbívoro, é um pouco diferente, a exemplo do caso de Louis na liderança da Shishi-Gumi. O veado vermelho, símbolo máximo de diplomacia, liderança e união do Colégio Cherryton, amado e venerado por todos e o favorito para ser o próximo beastars, acaba se misturando com um grupo de indivíduos que exalam exatamente o oposto desses ideais, como a selvageria, brutalidade, violência e agressividade dos leões famintos por carne (percebe-se que, na sociedade do anime, é comum a ligação da imagem do herbívoro com civilidade e pacifismo e, a do carnívoro, com força, violência e barbaridade). Em conjunto com os leões da organização criminosa, Louis se viu obrigado a adotar alguns costumes e comportamentos do grupo que vão em direção contrário a seus instintos de herbívoro, como a digestão de carne, por exemplo, para manter tanto sua posição de liderança frente a organização quanto o respeito entre seus membros, ainda mais porque a imagem pública sempre foi algo de extrema importância para o personagem (tanto no Colégio Cherryton quanto na Shishi-Gumi). Desta forma, a diferença entre a maneira como os carnívoros (Legoshi e Riz) e os herbívoros (Louis) lidam com um animal de outra espécie mostram não apenas o que cada um deve abrir mão para se adequar ao outro, com o diferente, mas também o que é exigido de cada um naquele universo, onde os carnívoros, para se adaptar em um ambiente de herbívoros, precisam abrir mão do porte físico forte, enquanto os herbívoros, em um ambiente de carnívoros, precisam da violência e da agressividade (inclusive, Louis precisou cometer alguns atos violentos para chegar até a liderança da Shishi-Gumi como matar o antigo líder do grupo).
A sociedade de Beastar preza pelos ideais de civilidade e harmonia entre os indivíduos das espécies, em detrimento aos conceitos de “bárbarie” e “selvageria dos instintos dos animais carnívoros, através da repreensão do natural e de sua substituição ao social, onde o indivíduo sofre uma série de alterações para destruir seus instintos selvagens e ser modelado e subordinada ordem social, e obviamente, são os animais carnívoros os mais afetados por esse processo. Por mais que o anime mostre que esse obsessão pela harmonia e civilidade acabe afetando, de uma forma ou de outra, os indivíduos que não querem ou que não se encaixam nos modelos pré-estabelecidos relacionados a sua espécie, como Legoshi, sendo um lobo, desejando ser uma pessoa mais gentil e Haru, sendo uma coelha anã, desejando ser uma pessoa mais forte e determinada, a obra falha em não apresentar naquele universo algum tipo de autoridade como uma “elite” ou um status quo que se beneficie desse tipo de discurso, como o que acontece na vida real. Nos grandes regimes políticos da humanidade (democráticos ou ditatoriais), todo o tipo de construção de sociedade que gire em torna da defesa de algum conceito ou ideal como “belo”, “culto”, “forte” ou “puro” sempre teve algum forte controle social ou combate de indivíduos, grupos ou ideais opostos como objetivo principal, sendo os opositores daquele determinado regime/status quo como também opositores a beleza, a inteligência, ao amor a pátria ou a vontade de Deus. Quando a sociedade de Beastars valoriza esses ideais sem que haja uma autoridade que se beneficia ou que perpetua seu poder com a divulgação desses conceitos, a obra cria uma ideia de que essa construção é feita simplesmente de forma individual ou que pode ser destruída ou modificado simplesmente com iniciativas individuais ou méritos dos próprios indivíduos, o que não passa de uma visão um pouco simplista da realidade. Isso já é mostrado com a própria trajetória de Louis até a liderança da Shishi-Gumi e com a maior probabilidade de ser o próximo beastar do Colégio Cherryton.
De todo modo, Beastars tem grandes méritos em diversas áreas, a começar pela parte técnica: o anime utiliza a chamada animação CGI (computadorizada) feita pelo estúdio Oragen, conhecido exatamente por essa técnica, e, ao contrário de outras obras como Berserk e Ajin que, mesmo sendo populares, foram extremamente criticadas pela má qualidade de suas animações CGI, Beastars usa-a de uma forma que trouse um novo olhar tanto do público quanto da crítica sobre essa técnica (muito provavelmente porque a CGI de Beastars é misturada com a animação tradicional 2D feita á mão, que parece enganar os olhos confundindo o que é computador e o que é desenho manual). Outro mérito de extrema importância a ser destacada sobre a série da Netflix é que a obra é competente ao se mostrar uma história madura e complexa com o passar dof tempo, trazendo violência e cenas sugestivas de sexo sem a necessidade de “pagar de adulto”, como faz algumas séries adolescentes atuais (inclusive da própria Netflix), que entopem a tela do telespectador de drogas, violência explícita e drogas de uma forma vazia. A violência de Beastars não é simplesmente jogada na tela: ela ocorre de forma progressiva com o andar da história, principalmente envolvendo o desvendamento do assassinato de Tem. Essa violência, ao passar do tempo, passar a ter, inclusive, significados emocionais para os personagens:
a exemplo de como Riz considera que a devoração de seu amigo foi um ato de “consideração” a ele
como Legoshi vê o treinamento de luta feito com Gohin uma oportunidade tanto de combater o assassino de Tem quanto proteger Haru de forma mais eficaz. Em outros momentos da narrativa, a violência, não mais gráfica e explícita, é apresentada de uma forma sugestiva através dos costumes e comportamentos dos personagens, como o jogo praticamente entre os carnívoros onde se compete quem tem a mandíbula mais forte, provando quem é mais agressivo ou quem tem mais virilidade. Em uma obra ficcional onde praticamente tudo gira em torno de brigas, conflitos e indivíduos sendo ameaças constantes uns para os outros convivendo em si em uma mesma sociedade, a própria presença de sangue, arranhões pelo corpo e animais carnívoros mostrando dentes e provando sua masculinidade são elementos que contém um profundo peso simbólico para a obra, mas Beastars, como dito, não deixa essas características extrapolarem e passarem dos limites, abordando-as de uma forma equilibrada sem aparentar algo vazio e forçado e, consequentemente, não resumindo sua história exclusivamente a isso.
A violência é também parte dos estereótipos e conceitos pré-determinados que a sociedade de Beastars cria sobre carnívoros e herbívoros, e vemos como Legoshi e Haru, principalmente, lutam para superar e combater esses padrões. Legoshi, sendo um carnívoro e enorme lobo cinzento, visto como naturalmente agressivo e predador, busca ser uma pessoa mais gentil e amigável, enquanto Haru, uma herbívoro e coelha-anã branca, vista como naturalmente delicada e indefesa, deseja se tornar uma pessoa mais forte e corajosa. O constraste e a união entre dois protagonistas em diversos níveis, tanto na personalidade quanto na própria aparência física (ele, um lobo cinza alto e vigem e ela, uma coelha anã branca e sexualmente promíscua e ativa), é um recurso característico dos clássicos animes shounens usuado para simbolizar amizade e rivalidade, como acontece em casos como Naruto e Sasuke, Goku e Vegeta e Gon e Killua, mas, ao contrário desses exemplos, o laço entre Legoshi e Haru contém elementos e abordagens muito mais profundas e até obscuras em comparação com obras clássicas como Dragon Ball, Naruto e Hunter x Hunter, mesmo que Beastars seja igualmente classificado como shounen. É justamente isso que a obra baseada no mangá de Paru Itagaki, serializada pelo estúdio Oragne e distribuída mundialmente pela Netflix tanto fala: contrastes e superação de paradigmas, através do conflito intenso entre selvagem e civilizado, natural e social, agressivo e gentil, enquanto personagens matam, morrem e se desgastam, as vezes de forma inútil, banal e em vão, nesse conflito.