The Owl House, série animada criada por Dana Terrace, é um desenho animado que, se fosse possível de ser descrito em uma única palavra, relacionando com a maneira na qual foi recebido pelo público e pela sua própria produção, com certeza essa palavra seria “polêmico”. Alguns elementos presentes na história sobre Luz Noceda e suas aventuras nas Ilhas Escaldantes irritaram alguns grupos específicos da sociedade (e, por incrível que parece, não foi a representatividade LGBT o principal motivo disso): primeiro por abordar temas como bruxaria, feitiçaria e demônios, para desagrado e mães e pais religiosos mais conservadores, segundo por se tratar de uma animação com um público mais velho e maduro, em contraste com o público infantil/infanto-juvenil que sempre foi prioridade da Disney, tendo a série, inclusive, sendo cancelada injustamente na terceira temporada com a alegação de que “não se enquadra/encaixa na marca Disney”. Nesse sentido, a própria existência da série e seu desenvolvimento como obra para chegar até onde chegou é, por si só, uma “confrontação” ou “resistência a inúmeros fatores externos que querem, por algum motivo, impor limitações ao desenho ou problematizar algum elemento essencial de sua temática, e, coincidentemente ou não, a própria série animada aborda um pouco temas como resistência, anti-autoritarismo e a busca pela identidade própria em situações de dificuldade extrema (esse último ligado, principalmente, a Luz Noceda que, além de ser latino-americana, é a primeira protagonista bissexual da Disney). Tendo temas essenciais como representatividade e amadurecimento, The Owl House é uma constante busca sobre um lugar ao qual pertencer e um objetivo a se buscar.
Todos os personagens principais do desenho, principalmente os mais jovens como Luz, Willow, Gus e Amity, enfrentam algum tipo de dilema ou adversidade que os impedem ou de buscar/afirmar sua própria identidade como indivíduos ou terem o livre arbítrio para tomar suas próprias decisões (e esse é um tema bastante recorrente nos desenhos do anos 2010): A Edalyn sendo uma bruxa livre em contraste com as exigência do Clã do Imperador em seguir uma linha específica de magia, Willow e Gus desejando aprender o tipo de magia que desejam em contraste com o que exige o sistema de ensino da Hexside, Amity desejando criar um laço de amizade maior com Luz, Willow e Gus em contraste com a imposição de sua família são exemplos dentre vários onde existe uma oposição entre o indivíduo e algum tipo de autoridade e força externa que impõe alguma regra ou ordem contra sua vontade, seja uma autoridade de caráter sócio-político como o Clã do Imperador, que controla toda a magia das Ilhas Escaldantes, seja de caráter íntimo ou familiar como a Hexside e a família Blight, e todas essas adversidades são fatos que acontecem na vida real e que apenas foram “traduzidos” para um mundo mágico e fantástico de bruxas e demônios, algo que Luz Noceda acaba percebendo durante o andar da história. A protagonista vivenciava no mundo humano essas mesmas dificuldades, onde era uma menina típica com uma personalidade extremamente criativa e animada, mas que é obrigada a se comportar como “normal”, quanto tanto sua mãe quanto o diretor da escola acreditam que a colocar em um acampamento é a melhor decisão para se tomar. Porém, quando ela se encontra no mundo mágico das Ilhas Escaldantes, percebe-se que será necessário se provar e se encontrar nesse universo, onde as adversidades, somadas ao autoconhecimento e a busca pela identidade que eram recorrentes na realidade anterior, agora também são algo ligado à sua sobrevivência básica.
Não é de hoje esse conceito do protagonista adolescente ou pré-adolescente saindo de uma vida ou cotidiano normal no mundo humano e indo para um universo paralelo fantástico ou mitológico onde vivenciará uma jornada épica e heroica de autoconhecimento e identidade; outras obras recentes como Amphibia, de 2019 (também da Disney) e Infinity Train, de 2020 (da Cartoon Network), também trabalharam com esse tipo de conceito. As três obras se assemelham por apresentarem uma protagonista que, por algum motivo, está ou se sente insatisfeita com a vida que leva, e durante a jornada para o mundo místico, fazem um enorme aprendizado sobre valorizar aquilo que tem e de se aceitar da maneira que é. O fantástico, o mitológico e o sobrenatural colocados, obviamente, como opostos ao real e ao cotidiano é, nesse tipo de obra, uma metáfora para o “além da normalidade”, para a transição de um estado real e material onde o indivíduo é preso a regras, ordens e comportamentos vigentes, na maioria das vezes sem a oportunidade de superar essa norma pré-estabelecida, para um estado místico, metafísico ou sobrenatural, onde, por mais que esse status quo ainda seja presente, como é o caso do sistema sociopolítico do Imperador Beros nas Ilhas Escaldantes, o indivíduo tem o momento de refletir e superar esse estado e até mesmo aplicar mudanças no mundo humano quando fizer seu retorno a esse, um tipo de narrativa bastante influenciada pelo que é chamado de “Jornada do Herói”, inclusive, no universo de The Owl House, o mundo humano e o mundo das bruxas é dividido literalmente por uma porta, uma alusão e simbologia direta a essa ideia de “passagem ou “transição”. Da mesma forma que a jornada nos vagões em Infity Train representa o autoconhecimento e o amadurecimento de Tulip, a protagonista da primeira temporada do desenho, a magia e a bruxaria são temáticas que representam aquilo que The Owl House quer transmitir sobre identidade e desenvolvimento. O universo das Ilhas Escaldantes gira em torno da aplicação da magia em todos os níveis de sua sociedade (da mesma forma, por exemplo, que o universo de Pokémon gira em torno de batalhas e ginásios ou que o universo de Beyblade gira em torno, obviamente, dos beyblades), e é a expressão máximo de tudo que o desenho deseja transmitir sobre liberdade e livre arbítrio. A ideia de “magia” (assim como “metafísica” de forma geral) está presente na maioria das civilizações da humanidade, mas seu conceito e a forma como é aplicada varia de acordo com cada povo ou religião espalhada pelo planeta, e essas inúmeras formas diferentes de expressar ou apresentar a magia é uma característica que também foi herdada para o entretenimento de massa. Ao contrário de outras temáticas como piratas vikings, samurais, ninjas, índios, alienígenas, etc, que também são bastante presentes na indústria cultural, as temáticas ligadas a magia e bruxaria tendem a ser menos uniformes na estética visual e nas narrativas que as anteriores, principalmente na forma como a magia é atividade em cada universo ficcional. Se em The Owl House a magia é atividade com um círculo desenhado no ar, em Harry Potter, por exemplo, é feita através de uma varinha mágica, e no anime Fairy Tail é feita levantando e esticando as mãos no ar. São obras de ficção que abordam a mesma temática e que possuem o mesmo tipo de história de ação e aventura, mas a magia, aquilo que as caracteriza, é também aquilo que as diferencia uma das outras.
Em praticamente tudo, a série se constrói, além da busca de uma identidade e do amadurecimento dos personagens, na ideia de uma “força externa” tentando impor ações, pensamentos ou ideologia contra a vontade das pessoas, independente se seja a própria mãe ou um acampamento querendo colocar a personalidade da protagonista em uma caixinha (como satiriza o panfleto do local no primeiro episódio), seja a opressão sistemática do Clã do Imperador no mundo das bruxas, e como foi explicado que The Owl House, na sua ideia inicial e na produção, já se iniciou como uma “resistência” a várias camadas de autoritarismo, outro conceito que o desenho também constrói sobre magia. Ou seja, além de expressão máxima de identidade, a magia em The Owl House é também expressão máxima de resistência. É justamente Edalyn, o mais óbvio símbolo de rebeldia contra as instituições e o status quo das Ilhas Escaldantes, que é tratada como criminosa apenas por não querer se enquadrar em um clã ou magia específica (imposição feita pelo Imperador Beros) e ser contra a contra a ideologia que torna a magia algo restrito e elitizado, da mesma forma que Luz foi repreendida, logo no primeiro dia de aula na Hexside, por ter uma curiosidade aguçada a todos os outros tipos de magia além da que foi imposta por ela. Exemplos no desenho não faltam de como aquele mundo é, em várias camadas, regido por sistemas políticos autoritários e injustos, e um detalhe que mostra a crítica de The Owl House a esse autoritarismo (além da óbvia assimilação entre o regime do Imperador Beros e qualquer autoridade do mundo real como governo e escola) é que todas as ameaças existentes nas Ilhas Escaldantes são muito mais ligadas ao mundo natural como as abelhas de fogo, a chuva de ácido, cavernas escuras e monstros fantásticos e mitológicos do que algum perigo vindo da sociedade de magos e bruxas. Ou seja, o governo do Imperador Beros não teria nenhuma justificativa para fazer tudo o que faz, principalmente com discursos paternalistas de “desejar a segurança e o bem do povo”, mas apenas, simplesmente, o autoritarismo e o egoísmo puro de seus governantes. A linha entre os temas “identidade” e “autoritarismo”, os dois principais temas do desenho, se torna ainda mais tênue quando a autoridade referida não é mais de caráter sócio-político, mas íntimo-pessoal, a exemplo da família Blight e suas projeções obsessivas sobre Amity, querendo afetar, inclusive, sua vida social, já que, obviamente, a família tem um papel muito mais forte e influente na construção da identidade do indivíduo do que qualquer outra coisa, e a maneira como Amity lida com isso é também responsável pela mudança de personalidade e comportamento da personagem.
Sabendo que The Owl House é uma história de episódios corridos como uma série normal onde, ao contrário do formato tradicional de desenhos animados com episódios curtos e histórias cíclicas, não tem nenhuma com a história anterior, com eventos que ocorrem através de uma cronologia entre passado, presente e futuro em uma cadeia de ação e reação. Por conta disso, se torna muito mais visível e compreensível o amadurecimento e a evolução dos personagens que passam por “estágios de transição”, onde, com o decorrer dos vários acontecimentos importantes da obra, aprendem novas lições com esses eventos, e o telespectador perceve que, em um intervalo de tempo, houve algum tipo de mudança, algum sinal, por mais mínimo e banal que seja, que uma ou várias coisas não são mais como antes. Voltando novamente com a comparação rápida com Infinity Train, o desenho da Cartoon Network, assim como The Owl House, inicia e desenvolve sua história mudanças e transições de estado: primeiro a protagonista Tulip Olsen que estava no mundo humano e depois é transportada para o trem infinito e, a partir dali, viaja interminavelmente pelos mais diversos tipos de vagões, numa ideia de constante movimento de mudança, da mesma que Luz Noceda, que também estava no mundo humano, é transportada para o mundo das bruxas e, a partir disso, passa a explorar os ambientes e o mundo (quase) infinito das Ilhas Escaldantes. Ou seja, em ambas as obras, as ideias de “mudança”, “transição” e “movimento são apresentadas na narrativa através de metáforas para autoconhecimento, busca de identidade e desenvolvimento como pessoas melhores, e em uma época onde temas como representatividade de minoria raciais, sexuais e geográficas estão em constante discussão tanto na cultura e no entretenimento quanto na política e nas ciências sociais, as ideias de “mudança” e “desenvolvimento também estão atreladas a esse debate (até a formulação da identidade do indivíduo é um processo que demanda tempo). Outros desenhos da nova geração também não estão isentos dessa questão: a série de episódios especiais Estaca Zero, da sétima temporada de Hora de Aventura (além, obviamente, de também ter o formato de episódios corridos como os vários outros especiais do desenho, indo na contramão do que é comum nos episódios da obra), mostra o amadurecimento e a autodescoberta de Marcelina referente a seus poderes de vampiro, resolvendo e respondendo mistérios sobre uma das principais personagens do desenho. No caso de The Owl House, a maior e mais imporante fase de transição acontece, como de se esperar, entre o final da primeira temporada e o início da segunda, onde, com o sequestro de Eda pelo Clã do Imperador, ocorre sucessivamente a perde de todos os seus poderes mágicos, o arrependimento de Lilith por suas ações no passado trabalhando para Beros, a revelação dos maiores segredos envolvendo a maldição da mulher coruja e o estreitamente dos lações entre Luz e Amity. Este último, inclusive, só foi possível de chegar ao estado que chegou nos últimos episódios da segunda temporada, onde uma referia-se uma a outra como namorada, apenas depois de uma série de eventos e transições que transformaram tanto Luz quanto Amity. Na maioria das vezes, são pequenos detalhes no visual ou na aparência dos personagens ou dos ambientes que mostram que houve algum tipo de mudança naquela história, de que alguma coisa não é igual como antes e que pode ter a capacidade de mudar completamente o norte da história ou apenas não passar de um simples detalhe que apenas serve para informar o telespectador. O principal (e mais óbvio) exemplo disso em The Owl House é a mudança da cor de cabelo de Amity do verde para o roxo, que simboliza a independência da jovem do nome, legado e exigências da família Blight e, consequentemente, sua afirmação como indivíduo, já que o cabelo verde, assim como a magia de aberrações, é uma das marcas registradas da família.
Assim como outros desenhos da nova geração, The Owl House é a descoberta do indivíduo em uma fase de transição, onde o mundo se transforma intensamente (assim como suas relações intra e interpessoais) em uma época onde tanto se fala em representatividade de minorias (de raça, gênero, orientação sexual, nacionalidade, religião, etc) e a conquista de espaços por esses grupos (mesmo que alguns desses espaços ainda sejam parte do mesmo sistema desigual que transformou esses grupos em minorias sociais), já que tanto Dana Terrace quanto Alex Hirsch, seu namoro e criador de Gravity Falls, ambos sendo bissexuais, não se sentiam contemplados nos desenhos que assistiam quando mais novos. Nesse sentido, o desenho animado sobre bruxas, magia e demônios vincula essas discussões nas suas abordagens e as interliga na sua temática mística e fantástica, ainda enfrentando resistências por causa de motivos éticos/morais (religiosos conservadores criticando a temática de bruxaria e magia do desenho) e financeiros e mercadológicos (executivos afirmando que a séria não se enquadra na “marca Disney”). Ou seja, The Owl House é de extrema importância para o questionamento e a luta contra os vários “imperadores Beros” da vida real, seja alguns grupos específicos da sociedade com certas ideias distorcidas, seja uma indústria cultural de entretenimento que destrói e limita a criatividade de criadores de histórias que tentam a vida entregando projetos a empresas.