“(...) ela é espreita como a noite, ela canta como os quatro ventos, ela é o fim da esperança, ela rouba crianças e ela vai destruir”. Over The Garden Wall é, antes de uma mera animação, uma passagem entre o conforto e o desconforto, o conhecido e o desconhecido e entre a infância e a fase adulta. É um retrato do medo interior de forma exteriorizada. A abordagem do medo é de forma instantânea, rápida, fluida leve através de curtos episódios, mas jamais algo que tem alguma pressa. É uma animação de mundo aberto rica em elementos diversos, mas com uma fluidez temporal que não é acelerada artificialmente para mostrar todos esses elementos de forma vazia, algo próximo de uma citação de um personagem, exceto nas brincadeiras de Greg onde o garoto se desloca para todo o cenário visível pelo telespectador, enquanto Wirt fixa-se em um único ponto para buscar informações e caminhos para voltar para a casa, afinal o desenho se constrói através da jornada dos irmãos em voltar para seu lar. Existe uma tendência da Cartoon Network em projetos que se passam em mundos abertos, como Hora de Aventura e Steven Universo, onde os personagens vivem e atuam nesses mundos e em sua vastidão. Entretanto, em Over The Garden Wall os personagens Wirt e Greg se encontram perdidos e deslocados nesse mundo aberto, ao contrário, por exemplo, de Hora de Aventura onde Finn e Jake aventuram-se de forma livre, como se já conhecessem tal universo. Ou seja, Over The Garden Wall, que é uma obra sobre o medo, o desconhecido e o obscuro, mostra o contraste entre os personagens e o ambiente, enquanto Hora de Aventura, que é uma obra sobre superações, sentimentos, aventuras, amadurecimento e reflexões, mostram personagens que se complementam no ambiente (algo que vai mudar, obviamente, com o amadurecimento).
Os elementos presentes em Over The Garden Wall em outras séries que seu, criador, Patrick McHale, já trabalhou mostram as influências e a importância dessas outras obras para mini-série, principalmente As Trapalhadas de FlapJack e Hora de Aventura, citado anteriormente. Porém, é FlapJack que merece a maior parte do mérito, pois não apenas Patrick McHale com Over The Garden Wall, mas também J.G. Quintel com Apenas Um Show, Pendleton Ward com Hora de Aventura e Alex Hirst com Gravity Falls, foram influenciados pela obra de Thurop Van Orman. McHale incorporou as cores da animação de FlapJack em Over The Garden Wall trazendo uma nova estética para a série. FlapJack contem um jogo de cores frias que traz a animação uma estética sombria, enquanto Over The Garden Wall mistura tais cores frias com cores pasteis, trazendo uma idéia de iluminação, principalmente quando o desenho se ambienta de manhã.
No cinema, a fotografia determina a intensidade de cores e iluminação na filmagem que alteram a perspectiva do telespectador sobre o que está passando. Em Over The Garden Wall, tal influência causada pela iluminação e pelas cores é presente no modo de abordagem do medo e dos conflitos dos personagens: quando a obra se encontra em uma ambientação de manhã, o sentimento de esperança causado pela presença de uma iluminação marrom alaranjada, enquanto a obra está em uma ambientação a noite, a sensação de tristeza, sobriedade e medo é causada pela presença das cores frias. Tim Burton, famoso diretor de cinema que criou um público infanto-juvenil com obras como A Fantástica Fábrica de Chocolate e O Estranho Mundo de Jack, é conhecido pelo uso de elementos góticos e excêntricos caracterizados pela estética rica em cores frias, sendo uma das grandes inspirações para Over The Garden Wall para a criação de sua base artística, juntamente com a literatura infantil e os contos de fada dos Irmãos Grimm. Inclusive, um dos contos mais infantis mais conhecidos do mundo e que serviu como inspiração para o surrealismo e para a fantasia para Over The Garden Wall, Alice no País das Maravilhas, foi adaptada para filme por Tim Burton em 2010. É interessante notar a importância para o filme de 2010 pois a obra de McHale se aproxima muito mais da obra de Burton do que do livro original de Lewis Carrol. No livro, Alice é uma menina mais curiosa relacionada ao lugar onde se encontra, enquanto no filme é uma garota mais reservada e quieta. Pode se dizer que Wirt se aproxima da Alice do filme enquanto Greg se aproxima da Alice do livro, mas o conceito de Over The Garden Wall, em sua maioria, se aproxima do filme de Tim Burton por uma questão temporal e cultural.
Muito mais do que o medo e o mistério, a mini-série aborda as conseqüências desses sentimentos em personagens que se contrastam diretamente não apenas nas noções desse medo e desse mistério, mas nas personalidades que influenciam nesses contrastes. Em Wirt e Greg, por exemplo, é nítida a responsabilidade e a imaturidade andando juntos, representando o “adulto/adolescente chato’’ e a criança alegre respectivamente. Tais contrastes de personalidades entre Wirt e Greg geram também contraste até mesmo na linguagem que cada um utiliza nas situações que vivem. Wirt, amante de poesia e clarinete, fala como se estivesse recitando um poema com uma linguagem subjetiva e poética. Greg, mostrando-se uma criança infantil e que age sem pensar, fala coisas aleatórias que vêem a sua cabeça, utilizando uma linguagem objetiva espontânea. Essas diferenças entre os dois irmãos e outras personagens, como Beatriz, são mais nítidas na primeira metade do desenho, mas suas semelhanças ficam cada vez mais nítidas quando o medo aumenta gradualmente. No caso de Beatriz, por exemplo, a garota transformada em pássaro azul é um contraste rude e agressivo contra Wirt, carregada de ironia e deboche contra o garoto, porém Wirt e Beatriz se aproximam e se conhecem mais no episódio 5, Louco Amor, (bem na metade do desenho) onde eles estão na mansão do “tio” dos irmãos. É justamente nesse episódio onde é revelado a paixão de Wirt pela poesia, pelo clarinete e por uma colega e como Beatriz foi transformada em pássaro. É a primeira vez em que a relação entre os dois não é ocasionada por algum conflito de ironias, deboches e ofensas.
Over The Garden Wall não torna seus personagens vazios criando apenas diferenças entre suas personalidades cuja única função é criar estereótipos e arquétipos, mas desenvolve semelhanças entre si para humanizá-los, ou melhor, mostrar que a humanidade tem a mesma forma substancial e existência independente de questões psicológicas, morais ou ideológicas. Wirt, Greg, Beatriz e, outro personagem não citado mas não menos importante, o Senhor da Mata, contém os mesmo conflitos, os mesmo problemas, a mesma busca por um objetivo e, a palavra-chave da obra, o medo. O Senhor da Mata, sendo a única presença adulta na obra, é um caso a parte, pois mostra como o medo é consumido e plantado numa mente adulta. Enquanto em Wirt, Greg e Beatriz, todos jovens, traçam o sentimento de medo sobrepondo-o sobre sua vida pessoal e seus objetivos, o Senhor da Mata/Lenhador vive paralelamente de seu medo. Sabe-se que ele tem a alma de sua filha dentro do lampião, e ele deve manter as chamas da lanterna acessa para, segundo A Fera, manter a alma de sua filha acessa. Porém, na verdade, é a própria Fera que é mantida vida com o objeto acesso. Sabe-se então que o lampião que o Senhor da Mata segura a série inteira é o signo de seu medo que, no final da obra, é superado quando Lenhador traz sua filha de volta.
Nos três personagens principais (Wirt, Greg e Beatriz), cria-se a reflexão sobre seus defeitos, habilidades e culpas, mas logo depois são superados. Wirt é um adolescente niilista com medos sobre paixões típicas da idade, mas que consegue superar seu medo aceitando quem ele é. Beatriz é a menina que se sente culpa pela situação (que ela causou) de sua família transformada em pássaros azuis, mas que consegue quebrar tal feitiço. Porém, é em Greg que a transformação pessoal é maior. O garoto de comportamento infantil reflete sobre papéis de liderança e responsabilidade, tendo um sonho mágico onde ele é transportado para um sonho com um mundo mágico, onde ele pede alguma a uma anja. Porém, já foi mostrado anteriormente que Greg tem inteligência para mudar uma situação para melhor, como foi o caso do episódio 4 onde ele transformou um ambiente escolar chato controlado por um sistema fechado e rigoroso de educação em um ambiente alegre, divertido e cheio de música.
Por fim, um último personagem que merece a atenção crítica é o antagonista, A Fera. Sua aparência física marcada por uma sombra abstrata com um formato de chifres, elemento que simboliza os animais, e ao mesmo tempo, o diabo, e formada por faces de expressão horrorizada, imagem mostra em poucos frames no último episódio. Sendo uma simbologia para o medo, ou seja, um sentimento abstrato, A Fera contrasta com outros antagonistas de outros desenhos recentes, como Bill Cipher, de Gravity Falls, e Lich, de Hora de Aventura, cujas aparências físicas contêm simbologias concretas.
Over The Garden Wall é reflexo de duas tendências, uma interna e outra externa, no mundo das animações. A interna refere-se ao sucesso da Cartoon Network em mini-séries como Infinity Train, lançado anos depois, que trazem poucos episódios que curta duração, mas que valem longas temporadas. A tendência externa é o fenômeno da crescente onda de animações com temáticas mais filosóficas e existenciais como Rick and Morty, Bojack Horseman e o recente The Midnight Gospel. Em uma geração que problemas como depressão e ansiedade crescem a tona em um mundo cada vez mais frenético e informativo, animações com esse tipo de temática é cada vez mais necessário. A animação de McHale traz isso de em poucos episódios de curta duração, mostrando que tempo não é algo importante para passar uma boa mensagem, coisa que desenhos com várias temporadas ou com episódios longos não conseguem fazer. O tempo é pequeno enquanto o medo humano e o desconhecido são enormes. O tempo é uma flor que se desmancha rapidamente. O medo é o segredo além do jardim.