Em 2022, o público que abraça a cultura pop como parte essencial de suas vidas já entende os mecanismos da indústria do entretenimento. Enquanto existem alguns esvaziamentos em termos de originalidade, mas não completas ausências, uma parte desta máquina de filmes, séries, livros e outras produções se sustenta na reformulação de velhas histórias. Remakes, reboots, remasters e outros “REs” fazem com que a fornalha esteja sempre quente, porém nem sempre tão atrativa aos olhos já calejados da audiência. Neste balaio, estúdios e conglomerados colocam as mãos em diferentes propriedades intelectuais para um exercício transmídia de recontar histórias a partir de diferentes perspectivas e meios.
Uma das próximas IPs a ganhar novos ares é The Last of Us, franquia de games exclusiva da Playstation desenvolvida pela Naughty Dog. Com uma história que se assemelha a muitas outras narrativas pós-apocalípticas, os dois jogos se sustentam como pilares da companhia por algumas inovações. Primeiramente, sabe-se que títulos focados na narratologia, que privilegiam os aspectos narrativos dos jogos eletrônicos, são um excelente palco para se criar uma experiência imersiva e cinematográfica nos videogames. É como jogar um blockbuster. Uncharted é um belo exemplo, ainda mais por ter as mesmas origens do game aqui discutido.
Tendo esse pensamento como base, Neil Druckmann, criador, roteirista e diretor de TLOU, elaborou uma história que redobra sua carga emocional justamente pela mídia em que se encontra. A entrega dos jogadores para uma aventura que une drama, ação e tenta fugir de maniqueísmos é fruto de uma fórmula que, a princípio, foi feita para funcionar perfeitamente para quem está com o controle nas mãos. Para além deste universo de pixels, a HBO viu potencial na história e vai conduzir uma adaptação seriada de The Last of Us. Com o primeiro teaser completo revelado há poucos dias, é possível que o título consiga fugir de alguns típicos problemas dessa transição de meios e se colocar como uma das poucas adaptações de games que conseguiram sucesso de público e crítica.
Essa pequena prévia, com pouco menos de 2 minutos, colocou não apenas os jogadores dos títulos na ponta da cadeira, mas também acendeu uma ponta de esperança nas mentes de outros players. Afinal, a narrativa chegou aos consoles em 2014, depois de uma infinidade de jornadas semelhantes. Ela é o resultado de diversas incursões por jogos de survival horror, stealth, ação, entre outros gêneros. Em um primeiro momento, pode-se fazer um link com outra aclamada franquia: Resident Evil.
Série da HBO pode entregar tudo o que os fãs de Resident Evil esperam há anos?
As semelhanças entre as franquias são diversas. Mesmo que o foco de cada game seja direcionado a um estilo específico de jogabilidade e história, os gêneros acabam se misturando e se confundindo ao longo das campanhas. Ao fim, fica a sensação de que “Resident Evil andou para que The Last of Us pudesse correr” em alguns aspectos - uns técnicos, outros narrativos. É claro que esse sentimento surge pelos paralelos que ambas as franquias compartilham. Não é preciso ir muito longe. Em The Last of Us conduzimos personagens que foram abalados pelo “fim do mundo”, uma pandemia que assolou a humanidade e transformou os seres humanos que não pereceram em monstros. Já nos jogos da Capcom, armas biológicas são aplicadas na população e um apocalipse zumbi é desencadeado, com um alto número de mortos e monstros. Ação, terror, suspense e poucos recursos também encabeçam ambas as jogatinas.
No entanto, mesmo com paisagens devastadas ao longo das aventuras, TLOU consegue evoluir alguns passos nessa premissa que já foi vista milhares de vezes na TV, nos cinemas e na literatura. A missão de Joel no primeiro game começa apenas como um trabalho a ser feito, uma entrega, e termina com dilemas morais e uma boa dose de reflexões sobre traumas. Já em Resident Evil, a maioria dos títulos serve apenas a um propósito: sobreviver ao caos instalado em uma vila, região ou cidade. Derrubar um vilão caricato também faz parte da cartilha, é verdade. Esses pontos podem se relacionar diretamente às inúmeras adaptações audiovisuais de Biohazard, como o título de survival horror é chamado no Japão. Os filmes e séries - sejam em live-action ou em animação - carecem de uma estrutura consolidada em seus roteiros, mesmo que o apreço estético esteja levemente presente em alguns momentos.
Em certas produções há um apreço pelo fanservice, com cenas de ação brutais, algumas referências às tantas localizações que se tornaram personagens da franquia (ola, Raccoon City!), e uma tentativa de trazer aquela atmosfera sombria para outra mídia. Todavia, esse esforço nunca é o suficiente quando a história não envolve o público. Em contrapartida, o que se viu em um breve teaser da série da HBO é animador em inúmeros aspectos. Os poucos segundos apresentam não apenas uma montagem que remete ao universo estabelecido pela Naughty Dog, em estilo e fotografia, mas também carregam o peso dramático da jornada de Joel (Pedro Pascal) e Ellie (Bella Ramsey). Esse breve registro também mostrou que, de forma assertiva, a história ganhará outros contornos para se adaptar à nova mídia da TV e streaming.
Um dos pontos que corroboram com essa ideia tomada pelo entusiasmo - e pela confecção desse texto - é também o envolvimento de Neil Druckmann no projeto. O desenvolvedor está inserido neste universo há mais de dez anos se formos contar o período de produção do primeiro TLOU. A visão única do diretor fez com que o game fosse aclamado em diversas instâncias, tornando-se uma peça de extremo valor para a Playstation.
Outro aspecto que também apoia a expectativa de sucesso da série é a produção da HBO, nome essencial no Emmy e conhecida por conduzir produções dramáticas de peso em toda a sua história. A empresa é referência de excelência, com produções como Euphoria, Mare of Easttown, Game of Thrones, Westworld, Barry, His Dark Materials, Succession, entre outros. Por fim, o envolvimento de Craig Mazin, roteirista e produtor da aclamada minissérie Chernobyl, é no mínimo um fator empolgante. Além de escrever o primeiro episódio de The Last of Us, ele está na produção executiva da temporada de estreia.
Em relação às adaptações de Resident Evil, dificilmente os criadores, diretores e roteiristas dos games tiveram esse mesmo nível de entrosamento com filmes e séries. Há anos, a IP está nas mãos da produtora Constantin Film, que não tem entregado o que os fãs esperam da franquia quando se trata da migração para telinhas ou telonas. Se ainda houver tempo e disposição da audiência, uma troca de produção poderia entregar uma adaptação que seja compatível com as expectativas do público. Isso poderia acontecer em alguns anos, após um breve descanso da franquia da Capcom nestas mídias.
O apreço com que o projeto previsto para 2023 tem sido construído colabora para que a fórmula da vindoura produção seja, talvez, permeada pelo sucesso. É possível, sim, que a série da HBO possa entregar tudo o que os fãs de Resident Evil esperam há anos. The Last of Us pode, enfim, ocupar um espaço aberto há pelo menos duas décadas que nunca foi devidamente contemplado.