"O corpo de Eva Perón virou um troféu, mas é necessário entender como se formou toda a patologia em torno dela, por que ficaram tão obcecados por ela." Assim o diretor Alejandro Maci resume a proposta da série Santa Evita durante um café da manhã no Alvear Palace Hotel, em Buenos Aires. A convite do Star+, o AdoroCinema foi até lá cobrir a pré-estreia da nova produção original da plataforma, que conta o que aconteceu com o cadáver da ex-primeira dama argentina após sua morte em 26 de julho de 1952.
Protagonizada pela atriz e cantora uruguaia Natalia Oreiro, Santa Evita é baseada no best-seller homônimo do jornalista Tomás Eloy Martínez, publicado em 1995, e chegou ao catálogo exatamente 70 anos depois da perda de Eva Duarte de Perón. Representada no cinema por Madonna e eternizada na Broadway com a música "Don't Cry for Me Argentina", Evita foi um fenômeno inexplicável que faleceu precocemente, aos 33 anos, devido a um câncer de colo do útero.
Entretanto, como nos lembra a roteirista Marcela Guerty no bate-papo, sua estrela já brilhava desde antes de se casar com Juan Domingo Perón, presidente por trás do movimento peronista e vivido por Darío Grandinetti no seriado. "Quando conheceu Perón, ela era uma atriz de radionovela em ascensão, presidente do Sindicato de Rádio. Ela não precisava de alguém para se levantar, pois tinha seu trabalho, era chefe de sua empresa", conta a escritora.
No decorrer dos seis breves anos em que serviu como primeira-dama, Eva fortaleceu a construção política e social que já vinha fazendo, sobretudo ao se voltar para as mulheres e os chamados descamisados (termo local para se referir aos pobres). "Eva fez com que as pessoas tivessem sonhos, que percebessem que havia outra vida. O quão maravilhoso é sair do destino que te impuseram e ouvir que você tem outra possibilidade?", avalia Pamela Rementería, que assina a adaptação com Marcela.
Esta última, por sua vez, cita os avanços trazidos por Evita nas pautas femininas e feministas. "Ela era uma mulher à frente de seu tempo, que se somava a todas as outras mulheres também, que lhes deu entidade, que lhes deu documentos, que lhes permitiu sair de casa. Não só ganharam direito ao voto, como foram eleitas", diz Marcela. "Foi um momento de grande explosão, mas tudo mudou depois do golpe militar. Essas mulheres, que eram justamente as mães, foram presas, muitas tiveram que voltar para dentro de casa. Ainda assim, passaram às filhas e filhos o amor por Eva, que dura até hoje."
O QUE ACONTECEU COM O CORPO DE EVITA PERÓN?
Na Argentina, a história é bastante conhecida; no Brasil, nem tanto. O corpo de Evita não foi enterrado após sua morte, e sim embalsamado para que pudesse ser depositado em um mausoléu que ficou só na maquete. Em 16 de setembro de 1955, as Forças Armadas derrubaram Perón, fecharam o Congresso Nacional e depuseram membros da Corte Suprema. Havia, no entanto, um problema: o que fazer com o cadáver de Eva – ou melhor, com os quatro cadáveres de Eva?
Além da verdadeira, foram encomendadas três outras cópias do corpo para permanecerem expostas no tal "Monumento al Descamisado". Quando os militares descobrem, decidem sepultar cada uma em um lugar diferente, escondendo a original por 19 anos para que não se tornasse uma arma contra o regime autoritário. Somente em 1971 foi encontrada e levada até Perón, então exilado em Madri.
"Uma das propostas de Santa Evita é mostrar o mau trato desse corpo e sua apropriação, relacionado a história de Eva ao que acontece com as mulheres atualmente", observa Marcela. "Afinal, ela se autofez e construiu um espaço de imenso poder. Até hoje, o preço é alto para mulheres que chegam a uma posição de prestígio. Eva foi chamada de muitos insultos, como barata, égua, potranca."
"Inclusive prostituta", intervém o diretor. "Ela tinha sido atriz, então isso adicionou mais uma cruz no tabuleiro." Para Alejandro, quando o romance de Tomás Eloy Martínez foi lançado, essas questões já eram latentes, mas não estavam no centro da conversa como ocorre no século 21. Ele comenta:
Nossa adaptação traz um olhar crítico para um grupo de homens altamente machistas respondendo uns aos outros e a uma ideologia que também vigora hoje, incapazes de tolerar autarquia, autonomia, liberdade de pensamento, o conceito, a liderança colocada nas mãos de uma mulher.
"POR QUE NÃO ENTERRARAM EVITA MESMO SENDO CRISTÃOS?", QUESTIONA ROTEIRISTA
Em Santa Evita, assim como nas escolhas dramatúrgicas de Martínez – que mistura ficção e realidade –, a rejeição a qualquer tipo de igualdade entre homem e mulher está aglutinada no personagem de Moori Koenig, interpretado por Ernesto Alterio e baseado em uma figura real. O coronel foi encarregado de dar fim ao corpo de Eva, mas acabou sequestrando-o com a ajuda de outros oficiais.
"Os militares precisaram se apropriar e depois erotizar seu corpo morto, embalsamado. Eles ficaram hipnotizados: não viram um caixão, e sim uma mulher igual a ela, uma espécie de boneca, e não resistiram a isso", pontua Alejandro.
Já Pamela aponta o comportamento hipócrita da ditadura argentina: "Por que não a enterraram em um cemitério sendo tão cristãos, tão católicos? É contraditório e bastante complexo esses sujeitos irem contra seus princípios morais e suas próprias leis."
"Por que não a queimaram? Por que não a destruíram?", questiona Marcela. Ao que Alejandro acrescenta: "Os homens que destronaram Perón estavam com medo. Por um lado queriam queimar o corpo, mas por outro tinham medo de cair."
"A passagem de Evita abriu os olhos da população ao provar ser possível um governo que atenda às suas necessidades básicas. Por isso os militares tiveram medo", esclarece Pamela. "O povo era indomável e, se descobrisse onde estava o corpo, se revoltaria."
"Todos ficaram extremamente comprometidos com um cadáver – sejam os militares, sejam os próprios argentinos. É como se o corpo estivesse mais vivo do que quando Evita estava viva", conclui o diretor da série.
Com um total de sete episódios, Santa Evita está disponível na íntegra no Star+. O elenco ainda inclui o astro de Merlí Francesc Orella (na pele de Pedro Ara, médico responsável pelo embalsamamento) e Diego Velázquez como o jornalista Mariano Vázquez, uma homenagem a Tomás Eloy Martinez. A direção é dividida entre Alejandro e Rodrigo García, filho do autor Gabriel García Márquez.