Após um período conturbado de filmagens por causa da pandemia de Covid-19, Um Lugar Sol finalmente estreou na segunda-feira (8), fazendo história como a primeira novela das nove inédita da Globo desde Amor de Mãe. Criada e escrita por Lícia Manzo (A Vida da Gente), a trama é estrelada por Cauã Reymond, que volta a interpretar gêmeos depois de tê-lo feito na minissérie Dois Irmãos. Dessa vez, um personagem é pobre e trabalhador; o outro é rico e playboy – o que muda quando o primeiro assume o lugar do segundo. Papéis completamente diferentes que refletem a realidade social do país.
"No Brasil, oportunidades são roubadas diariamente da maior parte da população", diz Lícia em entrevista virtual. "Hoje, apenas 14% dos adultos têm curso superior, são 13 milhões de desempregados, um quarto da população vivendo em situação de pobreza… Uma pergunta se impôs para mim de imediato: será que isso que eles desejam é realizável? Qual será o prejuízo íntimo, existencial, de abrir mão dos seus sonhos com 18 anos?"
Próximas novelas da Globo: confira quais são as novas produções da emissora"Eu comecei, então, a perseguir o personagem que sai do abrigo. A história era realista, mas não tinha o elemento do folhetim. Eu pensei: 'ele quer outra vida, uma vida que lhe foi vetada.' A história é principalmente sobre alguém que fica obstinado pela vida que lhe foi roubada", explica a autora. "É legítimo que eles olhem para o outro lado com muita cobiça. A minha tentativa era não vilanizar esse irmão que se passa pelo outro. Ele não conspira nem faz nada nesse sentido, ele não mata o outro irmão, ele não quer isso."
Para Lícia, o que está em jogo não é a troca, e sim a repercussão dentro dos personagens. "Eu estou muito mais interessada no jogo subjetivo que surge a partir disso, na camada psicológica e social que isso traz. Eu procuro uma história relevante, que me mova, que seja verdadeira para mim", afirma.
Também protagonizada por Alinne Moraes e Andreia Horta, Um Lugar ao Sol se aventura em temas polêmicos como relacionamentos intergeracionais e homoafetivos, violência doméstica, ensino na terceira idade, gordofobia, alcoolismo e mais. Lícia não tem medo de abordar assuntos espinhosos pois acredita que todo personagem é humano, quer dizer, ama, sente ciúmes ou insegurança, se arrepende.
"À medida que você se descola do estereótipo e busca humanidade dentro do nicho, acho difícil o público rejeitar. Porque o humano reconhece o humano. A gente é múltiplo. Esse discurso normopata vem apresentando sinais de falência há muito tempo. O que é normal? Quem é normal?", questiona a autora.
E o diretor Maurício Farias parece concordar com ela: "É uma chave muito poderosa quando você coloca [o debate] por meio de uma visão mais humana, mais carinhosa, mais afetuosa, com mais empatia. É o caminho que eu encontrei para falar de temas polêmicos, que são mais delicados ou mesmo tabus."
CAUÃ REYMOND SE INSPIROU NA MÃE, QUE FOI ADOTADA, PARA CONSTRUIR OS GÊMEOS
Sobre o fato de interpretar dois protagonistas – Christian e Christopher/Renato –, Cauã declara: "Foi o maior desafio da minha carreira até agora, em termos de complexidade. Foi completamente diferente do outro processo que eu tive [Dois Irmãos]." O ator só não imaginava o tamanho da missão que teria pela frente. "Havia uma insegurança minha e um desejo de entregar um trabalho de qualidade. Também por estar voltando às novelas depois de quase seis anos", lembra Cauã, cujo último trabalho fora A Regra do Jogo.
Na ficção, Christopher/Renato é adotado por uma família rica do Rio de Janeiro, enquanto Christian passa sua infância e sua adolescência em um abrigo. Durante a entrevista, Cauã contou que se inspirou na trajetória de sua própria mãe para construir os personagens: "Eu perdi minha mãe dois anos e meio atrás. Conversando sobre a novela com meu irmão [Pável Reymond], descobri que ela foi adotada pela minha avó, na época mãe solteira".
"Ela perdeu a irmã vítima de desnutrição, e a família decidiu entregá-la para alguém. Ela passou de mão em mão até chegar aos cuidados da minha avó. Então, foi muito contundente para mim estar dentro dessa realidade, desse universo muito duro, dessa busca por possibilidades", revela o ator.
"Uma das coisas que a gente aprende muito cedo é não julgar nenhum dos personagens que vai fazer. Nesse caso, o personagem já estava bem direcionado desde o início, graças ao texto da Lícia", continua Cauã. "Ela propõe uma reflexão sobre o momento que a gente está vivendo no Brasil. Até onde você iria para conquistar um sonho, para ter oportunidades que você não teve e não teria, para tentar ter uma vida digna? Até onde você se corromperia? E até onde você se perderia nas escolhas? Eu fiz uma grande jornada, amadureci muito tanto como ator quanto como indivíduo."
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Em Um Lugar ao Sol, Alinne encarna Bárbara, a namorada de Christopher/Renato. Apesar de ter uma vida luxuosa, ela é emocionalmente instável e carente de afeto, de sonhos ou mesmo de noções como certo e errado. "É uma personagem muito complexa. As coisas vão acontecendo na vida dela, e ela vai se moldando, se transformando naquilo, vai entendendo aquilo. Quando você acha que ela está evoluindo, ela volta e prepara umas armadilhas cada vez melhores para ela mesma cair. É uma personagem muito frágil, humana, delicada", descreve Alinne.
Para dar vida a Bárbara, a atriz diz que tentou fugir de todos os clichês e de todos os papéis que já fez. "Eu trouxe ela para o coração, para a verdade. E essa ingenuidade dela… Eu tentei pegar caminhos mais difíceis como atriz", admite.
Questionada sobre o rótulo de vilã que vem sendo associado a Bárbara, Alinne responde: "Eu não a vejo dessa forma. Ela tem atitudes equivocadas. Ela é um pouco bipolar, tendo herdado da mãe traços de personalidade que não são legais. Mas ela precisa da verdade. Acho que a verdade ajudaria muito ela, não só a terapia."
"As pessoas vão julgar a Bárbara porque ela comete vários erros, mas vão gostar muito. É um grande personagem justamente por sua intensidade. Um dos melhores que eu já fiz, sem dúvida nenhuma", acrescenta Alinne.
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Por sua vez, Andreia interpreta Lara, uma jovem formada em Gastronomia que se apaixona por Christian. "Ela é uma mulher muito brasileira, traz consigo uma alegria muito construtora. Ela é colorida, tem o riso solto, mas é muito corajosa e quer vivenciar o amor que ela sente", define a atriz.
Quanto ao fato de contracenar com Marieta Severo – que vive sua avó Noca –, Andreia confessa que foi não só um prazer, como também uma aula. "Ela é uma mulher incrível, uma artista admirável, muito honesta consigo mesma. A gente só se olhava e já sabia o que a outra estava pensando, se estava feliz, se concordava ou não. E são duas personagens de gerações diferentes, com valores diferentes – e, ao mesmo tempo, os mesmos, já que ela [Noca] criou essa neta", diz.
Ainda segundo Andreia, suas últimas personagens foram muito fortes, com temperamentos marcantes ou até desafios de revolução – como na minissérie Liberdade, Liberdade. "A Lara veio com um sofrimento de amor, com uma leveza que talvez seja inédita", analisa a atriz. E completa: "Ela tem valores inegociáveis, e acho muito importante que esses personagens se apresentem, pois viram um modelo de que é possível ser honesto, fazer tudo certinho. É importante mostrar que essas pessoas existem na vida real."