Manhãs de Setembro chegou ao catálogo do Amazon Prime Video nesta sexta-feira (25) e conta a emocionante história de Cassandra, uma mulher trans que está vivendo um momento de extrema independência em sua vida. Duplamente empregada como motogirl, na parte da manhã, e cantora cover da Vanusa, de noite, ela se divide entre o trabalho, o amor com o namorado Ivaldo e a companhia das amigas. Sua tranquila rotina, no entanto, é afetada com a chegada de Gersinho, um filho do que nunca soube que tinha — até agora.
A série tem cinco episódios de, em média, trinta minutos de duração e é estrelada pela cantora Liniker e Karine Teles, um dos nomes mais influentes do cinema nacional. Além delas, a atração também conta com o talento mirim Gustavo Coelho e os atores Thomás Aquino e Paulo Miklos, além da participação especial de Linn da Quebrada. Originado de uma ideia de Miguel de Almeida, autor do livro “Primavera nos Dentes — A História do Secos & Molhados”, Manhãs de Setembro é dirigido por Luis Pinheiro, enquanto Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro assinam o roteiro.
Em entrevista ao AdoroCinema, a roteirista Alice Marcone explicou o que está por trás da essência do título de Manhãs de Setembro, que tem o mesmo nome que a famosa música de Vanusa. “A relação de Cassandra com Vanusa é algo que vem desde o primeiro documento de venda dessa série, então não é algo que nós tiramos da cartola. Mas decidimos sustentar essa escolha e manter esse nome porque a gente acha que essa música, que está no piloto [sendo] cantada por Cassandra, reflete muito o movimento dramático da personagem, seus conflitos, as escolhas que ela fez e faz durante a série e até mesmo antes de entrarmos na narrativa. Decidimos manter pela irreverência na letra e pelo o que Vanusa representa enquanto uma das cantoras que trouxeram o feminismo, a independência, o sofrimento e o amor mais interessante para a música popular brasileira.”
Liniker também conversou com a gente e contou sobre a preparação para viver a protagonista Cassandra. Nomeada ao Grammy e dando seus primeiros passos para a carreira de atriz, ela contracenou com Karine Teles, que carrega mais de vinte anos de história no teatro, nos cinemas e em programas de TV, incluindo produções como o premiado filme Bacurau, Que Horas Ela Volta? e Benzinho.
“A gente foi preparada pelo Renê Guerra, uma pessoa muito generosa, que trouxe pra gente um pouco da ambientação das personagens. Recebemos muitos briefings de referências de outros lugares e isso fez com que as personagens ficassem tão consolidadas, como aparecem na série. O nosso trabalho de interação com o elenco [também ajudou], como a Karine costuma dizer, cada talento ali espelhou o talento do outro para que conseguíssemos aparecer de maneira tão viva na série.”
De acordo com Karine Teles, o primeiro contato entre o elenco foi online, pelo Zoom, pois estavam em diferentes cidades durante o período de isolamento na pandemia. Quando finalmente se encontraram presencialmente, o elenco já tinha uma afinidade desenvolvida devido aos encontros virtuais para a preparação, e isso auxiliou a dinâmica em cena. “Faz muita diferença trabalhar com pessoas que a gente gosta, então nós já criamos um vínculo antes de nos vermos pessoalmente.”
Quando a realidade e a ficção se encontram
Ao ser questionada a respeito dos maiores desafios de interpretar Leide, a mãe de Gersinho que retorna para a vida de Cassandra e a bagunça por completo, Karine Teles pontuou a dificuldade de enxergar a si mesma reproduzindo as atitudes da personagem, que em diversos momentos apresenta falas transfóbicas.
“Alguns comportamentos da minha personagem foram desafiadores porque são muito diferentes do que eu faria. E algumas situações de embate entre a Leide e a Cassandra também foram um desafio para que eu não apresentasse um julgamento da personagem, ao invés de me colocar no lugar dela e estar de fato lá. Foi um trabalho de entender os limites aos quais ela está exposta, porque ela está vivendo de maneira muito precária e com um extinto de sobrevivência muito aflorado. Tem coisas que ela está fazendo para se manter viva. O desafio foi encontrar esses lugares dentro de mim em que eu pudesse emprestar alguma autenticidade a esses comportamentos repreensíveis.”
As situações que envolvem Cassandra e Leide em Manhãs de Setembro se aproximam não apenas da realidade das atrizes, mas também são relacionadas à vivência de mulheres trans e mães solteiras no Brasil. Durante a conversa, Liniker compartilhou seu pensamento sobre como a protagonista reflete a luta contra a transfobia e pela independência e direito de existir na atual sociedade em que vivemos.
“Acho que a Cassandra está tentando ser legitimada dentro de uma sociedade que é extremamente transfóbica, racista e violenta. O lugar dela também é de sobrevivência, ela é uma mulher que pauta esse lugar o tempo todo para poder existir. Seja sendo autônoma no trabalho dela, sendo independente dentro da casa que ela acabou de alugar, ou construindo os laços e relações afetivas dela. Do ponto de vista desse recorte feminino do que é a Cassandra, [a realidade dela] é sobreviver e estar inteira na trajetória dela. E quando chega esses afetos, esse filho, essa família, é lidar com essa realidade muito doida, que é como se ela estivesse perdendo tudo o que construiu. É complexo.”
Orgulho LGBTQ+: Atores e atrizes trans de destaque que você precisa conhecerPara Karine Teles, sua personagem sai do âmbito da ficção e se conecta com o cotidiano de mães solteiras de forma íntima e fidedigna, assim como também reflete a realidade de moradores de rua e vendedores ambulantes. “A Leide é o espelho de milhões de pessoas no nosso país, infelizmente cada vez mais estamos vivendo um retrocesso muito grande nesse sentido de perda de direitos trabalhistas, de aumento da pobreza, crescimento do número de pessoas moradoras de rua, mesmo sabendo que moradia é um direito constitucional. A gente tem um desamparo, um preconceito e uma marginalização das pessoas que lutam pelo direito à moradia e isso é muito grave no nosso país nesse momento. Apesar de a Leide ter essa personalidade de conseguir rir e se divertir apesar de estar passando por tantas dificuldades, acho que ela reflete um problema bem grave na nossa sociedade."
A amplitude do conceito de família
Em Manhãs de Setembro, outro aspecto condizente com o mundo atual é a diversidade de formatos e conceitos da palavra família. A série desconstrói a padronização dos lares tradicionais brasileiros e busca normalizar a pluralidade do que pode ser considerado como família. “Uma coisa bonita na série é falar da maternidade como uma construção. Maternidade não é uma coisa dada. Não é porque você é mãe que você cria instantaneamente uma relação de afeto, e a Cassandra acabou de virar mãe e tem que construir a relação com o filho. Isso é muito bonito porque toca nessa beleza que é entender que família é uma palavra muito ampla”, diz Karine Teles.
A atriz continua: “Famílias são muito diversas e têm constituições muito diferentes. Pode ser duas pessoas, pode ser quinze. Pode ter laços sanguíneos ou não. Pode ser formada por pessoas de origens e gêneros diferentes. São muitas possibilidades e o elo da presença, do afeto e do acolhimento é a única coisa que deveria ser o sinônimo de família.”
Abraçando as diversas construções de família, a série do Amazon Prime Video aborda com naturalidade o contato de crianças com pessoas da comunidade LGBTQIA+. Na atual sociedade, ainda há o preconceito enraizado em adultos quando se trata da relação de proximidade entre menores de idade e grupos diversos em gênero e orientações sexuais, mas a roteirista Alice Marcone pontua a importância do seriado ao normalizar essa conexão.
“Manhãs de Setembro é sobre família e suas novas formações e desde o começo da concepção da série entendemos que isso se constrói pelo afeto, pelo amor. A gente tem uma agenda política que tenta reduzir a noção de família a uma coisa bem específica e a nossa série está aí para mostrar que existem muitas formas de construir uma família. O Gersinho está aí para ensinar através do próprio aprendizado, do crescimento dele e da relação dele com a Cassandra, como isso pode ser conquistado.”
Protagonismo trans dentro e fora das telas
Assim como Liniker, Alice Marcone também é conhecida por seus trabalhos musicais e faz parte de uma nova tendência conhecida como “queernejo”, um sertanejo produzido por artistas da comunidade LGBTQIA+, cuja narrativa também é direcionada para tal grupo de pessoas. Ao escrever a história de Manhãs de Setembro, a roteirista assume o espaço como porta-voz de sua própria vivência enquanto mulher trans, trazendo mais autenticidade ao enredo da série.
“O trabalho da Alice na sala de roteiro foi super importante porque nos ajudou a aprofundar a personagem de Cassandra, seu relacionamento com Ivaldo, e nos afastar de estereótipos”, defende a argentina Josefina Trotta, que também é roteirista da série e esteve por trás de trabalhos como Meu Nome é Bagdá e O Livro dos Prazeres.
O diretor Luis Pinheiro, que também comandou as câmeras nos seriados Lili a Ex e Samantha!, afirma que a presença de Alice Marcone é indispensável na equipe criativa. “Quanto mais a gente se cercar de vozes poderosas em seus próprios lugares de fala, exercitar a escuta e validar a experiência de cada um também é um exercício transformador, é algo que a gente tem que fazer nos dias de hoje. Fazer cinema é uma arte colaborativa e o que nos une é o afeto.”
A própria Alice Marcone corroborou com a declaração dos colegas de trabalho e ainda pontuou que, além do local de fala, é necessária a construção de uma equipe divergente entre si, para que diferentes pontos de vista sejam contemplados e agreguem em complexidade para os personagens.
“A gente experimentou um processo com muita horizontalidade. Tem uma protagonista trans, eu sou trans, mas a diversidade transborda a transgeneridade. Acho que a gente tem uma sala [de roteiro] que tem pessoas com vivências muito diferentes, muito diversas entre si, e isso nos ajudou a trazer realidade e humanidade a todas as personagens, não só para a nossa protagonista. Então eu sou uma defensora da diversidade por trás das câmeras, onde a gente precisa de pessoas com perspectivas diferentes, porque é isso que vai nos ajudar a quebrar os estereótipos que vêm de uma visão muito etnocentrada de um grupo só.”