Esta provavelmente é uma realidade que você já conhece muito bem aqui no Brasil: com um Estado muitas vezes omisso e negligente ao papel de instruir as pessoas menos favorecidas socialmente, favelas rotineiramente são divididas entre tráfico e milícia que disputam o poder na região: dentro deste panorama, até mesmo um simples intervalo de 24 horas pode mudar diversas vidas de uma só vez.
Assim é justamente a premissa da série Um Dia Qualquer, cuja estreia está programada no canal de TV à cabo Space para o dia 17 de agosto, segunda-feira, às 22h. Coprodução com a Elixir Entretenimento e Com Domínio Filmes, o seriado possui direção de Pedro von Krüger e produção de Denis Feijão. A série irá ao ar de segunda a sexta, com exibição de um episódio por dia, no mesmo horário. No sábado, dia 22 agosto, o canal traz com exclusividade uma maratona completa, a partir das 18h.
Aproveitando a ocasião, o AdoroCinema participou de uma entrevista com o trio de protagonistas — Augusto Madeira (o miliciano Quirino), Mariana Nunes (a viúva Penha) e Jefferson Brasil (Seu Chapa, último traficante antes da mílicia tomar poder) — junto ao diretor e o produtor já citados. Segundo Pedro, o canal Space foi a casa ideal para a série, que é de certa forma uma história de tragédia:
"É uma tragédia grega "à brasileira", parece que aqueles destinos estavam traçados. Mas, para minha surpresa, me propuseram a ideia de transformar a ideia do [filme] Um Dia Qualquer em série. Só que naquele momento eu pensei: 'O filme se passava em 24 horas, e aquelas 24 horas estão todas completas. Eu não posso criar mais dias além das 24 horas. Mas eu posso contar a história pregressa dos nossos personagens", explicou ele.
Vale lembrar que o roteiro era inicialmente um filme, que ainda será lançado, mas a série, enquanto isso, conta o passado de alguns dos personagens, também no formato de um dia, porém 10 anos atrás dos acontecimentos atuais. E os atores aproveitaram para falar a respeito das dificuldades de interpretar personagens tão diferentes:
Augusto, por exemplo, relatou que o miliciano Quirino não é tão preto no branco como se pode imaginar: "Como ator, sempre procuro defender meus personagens. A primeira coisa que move meu personagem [Quirino] é o senso de justiça, mas não importa os meios para justificar os fins. Eu acho ele muito facilmente defensável", contou. Augusto relata também que tem procurado se distanciar do humor que o lançou à TV e aproveita para contar que sua convocação ao elenco veio após o diretor Pedro vê-lo na série Crime Time, atualmente na Netflix.
Jefferson, morador do Vidigal, conta que a realidade da série é relativamente próxima de sua vivência, mas que o caminho até o papel não foi tão óbvio: "Acham que por a gente morar na comunidade, esses personagens se tornam mais fáceis de fazer. Sendo que eu venho da instituição "Nós do Morro", um teatro incrível no Vidigal que dá oportunidade aos jovens há mais de 30 anos para fazerem arte e levar informação ao mundo".
Eu já vinha de muitos personagens que viviam esses estereótipos, mas nunca tinha despertado em mim a vontade de defender o melhor lado deles. Parece que você fazer uma cara de mau é fácil por estar dentro de você, e eu sou pai de família, tenho dois filhos e é preciso trabalho e preparação pra isso tudo. O Jefferson é um tipo de pessoa e o Seu Chapa é outro. Mas antes de ser bandido, ele é um pai de família que tem sentimento, mas não tem oportunidade. Quem sabe se ele tivesse oportunidade neste Brasil que a gente vive, não tivesse outra profissão? O Seu Chapa é vítima de uma elite branca que vem, há tempos, anulando nossa história. Poder falar através do meu personagem é incrível, porque hoje a família carente não tem estudo, não tem educação, mas tem uma televisão, e é através dela que eles veem estereótipos que não levam a lugar algum".
Marina, que interpreta sua viúva e ex-parceira de tráfico, Penha, endossou a fala de Jefferson: "Cada um tem sua técnica, mas eu não tenho como atuar sem ter o que eu conheço. Então é claro que o Jefferson tem muito conhecimento sobre [o assunto], mas Marechal Hermes é um lugar muito diferente do Vidigal, que é diferente da Rocinha. Independente de onde você vem, é necessário haver um trabalho de equalização. Experiência própria todos nós trazemos, mas isso não é suficiente".
Augusto finalizou falando sobre a delicadeza dos personagens retratados: "Do traficante ao evangélico, todos têm um projeto de poder. Acham que se você é traficante, deixa de ser evangélico, e vice-versa, mas não é assim. A Igreja evangélica é muito forte nos presídios. A região de Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, é dominada pelo Complexo de Israel, de um traficante evangélico que detona outras igrejas e religiões como a Umbanda. Isso serve pra gente não achar que as coisas andam tão separadas assim".
Pedro fala também falando sobre os testes de elenco: "Não fazíamos o teste de elenco clássico que era a leitura de uma cena e pronto. Eu fazia uma pequena entrevista com cada um dos atores, porque na verdade eu gostaria de saber quem é aquela pessoa além do talento que elas tinham, até para chegar nessa coloquialidade. Por exemplo, o Willean [Reis], que é o Beto, tinha um vizinho miliciano, eu descobri isso na entrevista."
"O elenco em sua grande maioria é preto também, o que de encontro em nossa busca de trazer pessoas reais para a história. Não é só uma equipe diversa, como um elenco totalmente diverso e íntegro. A gente tomou uma decisão muito importante de ter mais de 350 figurantes e a maioria das pessoas era da Zona Norte do Rio, como Marechal Hermes, Bento Ribeiro... é vibrante ter isso na tela, é muito importante pra gente.", completou Denis.
Em uma época onde o Brasil faz tantas produções com temática policial em relação ao tráfico, von Krüger falou também sobre as diferenças de sua série às demais: "A gente tem uma intimidade com os personagens que é diferente. Porque essa série se passa muito dentro das casas, dentro das intimidades, é mais humano do que os outros exemplos [Tropa de Elite 2, que havia sido citado anteriormente]."
"Quando a gente escreveu essa história, a gente colocou um personagem querendo ser candidato a vereador. E hoje o Rio de Janeiro está exportando este sistema para o país, e a gente precisa se juntar e travar esse processo de crescimento porque a gente tá perdendo o controle. Aliás, já perdemos, vide o assassinato de Marielle Franco, que é um atentado terrorista e passa por grandes eventos da história da humanidade. Assassinar um parlamentar por questões políticas não pode ser visto como uma coisa comum.