Atenção: o texto a seguir pode conter spoilers da 1ª temporada de Boca a Boca.
A nova aposta da Netflix é Boca a Boca, série de suspense brasileira comandada por Esmir Filho e Juliana Rojas. Seguindo uma epidemia transmitida pelo beijo em uma cidadezinha conservadora do interior do Brasil, a série aborda temas como a juventude, descoberta da sexualidade, internet e relações humanas.
“Eu queria falar sobre a juventude hoje, os adolescentes e as multi telas. Como que é estar rodeado de telas e onde que está a vontade cíclica. Se tudo é um mundo virtual, como que é o desejo físico do adolescente hoje?”, explicou o roteirista e showrunner da série em entrevista exclusiva ao AdoroCinema. “Para construir esse universo, eu tive que criar a antítese disso, que é a cidade de Progresso. O nome é uma ironia, mas é uma cidade cheia de imagens de controle, do moralismo, do que pode fazer, o que não pode, cheia de regras. Essas imagens de controle acabam querendo abafar o desejo dos adolescente, que estão pulsantes, que querem experimentar”.
A série é acompanha especialmente três protagonistas: Fran (Iza Moreira), Alex (Caio Horowicz) e Chico (Michel Joelsas), que Esmir Filho diz se identificar como alter ego de cada um deles. “Todos os personagens têm um pouquinho de mim”, afirma. “O ponto de partida é a epidemia, mas eu acho que a série aprofunda mesmo nas relações humanas e comportamento social, diante de uma crise como essa. É um pouco esse ponto da história: a vontade de falar por adolescentes, sobre desejos hoje, e sobre essa onda de conservadorismo que quer calar os nossos corpos.”
Inspirações para Boca a Boca
Esmir Filho, que tem na carreira filmes como Os Famosos e os Duendes da Morte e Alguma Coisa Assim, revela que se inspirou na HQ “Black Hole”, dos anos 1970 de Charles Burn, que segue uma cidade americana no interior, os jovens começam a se relacionar sexualmente e viram mutantes. A ideia bebe também de um curta-metragem do diretor: Saliva, que acompanha uma jovem que tem medo de beijar e medo de saliva.
Boca a Boca tem curiosa relação com a pandemia atual
Enquanto a série da Netflix estreia em um momento-chave mundial, que é a pandemia do coronavírus, a tal doença transmitida boca a boca e como a sociedade reflete a ela, foi inspirada em outras epidemias reais. “O que percebemos na sala de roteiro foi que os comportamentos diante de uma epidemia se assemelham. Ao longo da história, por mais que as epidemias sejam diferentes, desde tuberculose, a gripe espanhola, o HIV, sempre existem alguns comportamentos parecidos na sociedade, que é de pânico, medo, falta de informação, preconceito, acesso de corpos privilegiados ao tratamento, e de outros não. O que faz com que a gente escancare a doença social assim que está acontecendo em uma comunidade.”
Sobre ter “previsto a pandemia”, o diretor afirma: “Está muito latente o que estamos vivendo agora mas em todo o quadro de epidemia, temos uma situação parecida. Então, precisamos entender que temos que nos apoiar. A série passa uma mensagem de afeto, de acolhimento, de tolerância. Precisamos entender, dialogar e estar junto de quem pensa diferente da gente.”
Boca a Boca: Denise Fraga revela semelhanças de série da Netflix com pandemia do coronavírus (Entrevista Exclusiva)Esmir ainda revelou que a série foi finalizada pouco antes da quarentena começar, e não tiveram tempo de mudar nada para se adequar ao momento atual. Ou seja, qualquer semelhança com o momento que estamos enfrentando com o coronavírus, é sim mera coincidência. Ele contou a cena da segunda festa foi bastante discutida entre os roteiristas. “Quando estávamos na sala de roteiro, começamos a pensar numa nova festa para o episódio 4”, disso o diretor com exclusividade ao AdoroCinema. “E as pessoas falando… ‘Ninguém vai querer uma nova festa, está tendo uma epidemia, ninguém vai sair de casa’. Aí rolou uma discussão, eu falei ‘Imagina, as pessoas não vão aguentar ficar dentro de casa, vão querer sair’. E o que ganhou foi que ia ter a festa e os jovens iam pular a janela e o muro para ir. E gente, é a coisa que mais a gente vê agora, olha como são as pessoas. Essa história de furar a quarentena”, relacionou ele sobre os fatos que chegaram às notícias recentemente, de pessoas enchendo bares enquanto as taxas epidêmicos seguem altas no Brasil.
Assim como a série como um todo, a doença de Boca a Boca também tem uma estética própria: manchas pretas que, no escuro, brilham em neon. Esmir revela que pesquisou muito para criar o universo em torno dessa doença fictícia. “Estudei a pesquisa do neurocientista António Damasio sobre como sentimentos funcionam no nosso corpo, do ponto de vista biológico. Captamos as coisas do mundo, elas são absorvidas pelo nosso corpo. Existe uma trilha de sentimentos que são internos, que viram emoções, que são áreas corporais. Eu criei essa síndrome que realmente era uma falha do mecanismo da aceitação”, comentou. Em Boca a Boca, os jovens que não aceitam seus sentimentos ou desejos, ficam em pânico, passam por uma confusão de sentidos até virarem apáticos. “Eles deixam de sentir e eu achava poético, deixar de sentir”, disse Esmir. .”E eu imaginava isso, que era uma mancha preta no claro, mas ela brilhava e aparecia no escuro porque os sentimentos querem vir à tona. Toda essa mitologia da doença foi criada com base como funciona o nosso sentimento no corpo. Quanto mais isolado dos adolescentes, mais manchas vão surgindo, mais apáticos vão ficando. E a cura é super simbólica, que é o acolhimento, o afeto. O óleo ajuda a estancar o sentimento. Faz com que eles coloquem tudo para fora, é uma metáfora muito, muito forte. Assim como não temos que reprimir os nossos desejos”.
Boca a Boca vai ter segunda temporada?
Tratando-se de uma produção de suspense, Boca a Boca deixa alguns mistérios em aberto. Tentamos arrancar alguns spoilers do cineasta mas ele revelou que temos que esperar pela segunda temporada.
“Peçam a segunda temporada, porque temos muito a explicar. Essa primeira é uma temporada cheia de pista, a gente já sabe muita coisa, mas a gente vai desenvolvendo. Não vou dar spoiler porque a gente vai desenvolver na próxima temporada”, disse o cineasta. “Eu quero muito fazer a segunda temporada”, disse empolgado. “Mas na Netflix, eles esperam algumas semanas para ver como o público reage à série e então confirmam a segunda temporada. O público é quem manda.”
Mistérios sobre a temporada
Ainda assim, Esmir exaltou que muitas das respostas estão espalhadas pela temporada e deu um gostinho sobre algumas teorias que elaboramos para a série.
Quando questionamos se Chico seria imune, ou simplesmente não teria ficado doente porque ele aceita seus desejos e permite sentir, Esmir revelou: “É uma teoria boa, porque a gente não explica porque o Chico não ficou doente. Ele até fala que não tem manchas, e revela que está sentindo, porque a menina não estava sentindo nada. É bonito que o sintoma da doença é deixar de sentir e por ele se proteger, na verdade, ele quase ganha uma imunidade essa doença. É uma das perguntas da série, e é muito bonita essa leitura. Se a gente não se reprime dos nossos desejos, respeitando todo mundo, respeitando ao nosso redor, a gente está livre dessa doença social, que é esse conservadorismo, sim. Então, Chico acaba vivendo uma outra coisa na fim da história, que eu não vou dar spoiler, que é justamente fruto da imagem de controle para a violência que gera, por conta de uma coisa, de um desejo puro dele, da vida dele. É essa complexidade que acontece no final com Chico, ele justamente sente e por isso está a salvo da doença mas não está a salvo da maior doença do mundo, que é a homofobia”.
Sobre o relacionamento entre Chico e Maurilio (Thomas Aquino), questionado por alguns fãs como pedofilia, o diretor explica: “Pedofilia diz respeito a algo muito mais complexo, muito mais problemático, que tem a ver com uma pessoa maior de idade forçar uma criança. A gente está falando ali de um adolescente, de um jovem, que tem 17 anos, idade de consentimento sexual. É juridicamente legal. E mais: ele deseja, ele quer. Os dois querem, então é uma história de amor bonita”, comentou.
Boca a Boca: O que significa a cena pós-crédito da série da Netflix?Já sobre a misteriosa seita composta pelos membros da aldeia, o showrunner comentou que não os vê como bons ou maus. “Eles são um mistério. E quem os chama de seita são os pais de Progresso, que querem mais controle. Eu acredito que eles não seja do mal, nem do bem, não é sobre isso, mas eles são um desconhecido, e a cidade, os costumes, as tradições têm muito medo do desconhecido. A série traz todo um mistério para esse lugar, esse mundo desconhecido, que é o da aldeia.” Esmir, no entanto, não deu nenhuma pista sobre o que aconteceu com eles no final, ou mesmo com Manu.
Trilha sonora de Boca a Boca vai ser lançada no Spotify
Um dos elementos que mais chama a atenção na série é a empolgante trilha sonora. “Cada episódio já tinha uma música que Chico ouvia”, relembrou Esmir Filho. “Tem várias músicas que já estavam no roteiro. Eu já estava criando um universo meio ‘sinc top punk rural’”, brincou, exaltando o remix de “Boi da Cara Preta” feito especificamente para a série e a música original “Vamos ser o caos”, da banda Letrux.
O diretor também comentou, em primeira mão, que eles vão lançar em breve a playlist oficial da série no Spotify. Aguardamos ansiosos!
Boca a Boca está disponível na Netflix.