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    Dickinson: Crítica da 1ª temporada

    Hailee Steinfeld brilha numa das séries mais criativas de 2019.

    Nota: 4,0/5,0

    Nunca é tarefa fácil contar a jornada de uma figura histórica. Usar apenas documentos de séculos passados e transcrevê-los em alguma linguagem atual é uma função anacrônica demais para acertar 100%. Logo, é comum ver biografias frias, naquele estilo que sempre se torna queridinho do Oscar, mas quase nunca chega ao gosto do público. A criadora Alena Smith decidiu optar por um caminho bem diferente com Dickinson.

    Além de fugir dos moldes optando por ser uma comédia, a série usa a imagem de Emily Dickinson (Hailee Steinfeld) como filtro para observar os dias atuais. Desde a primeira cena (e o primeiro palavrão), está claro que não se trata de uma biografia comum, mas sim de uma analogia fantasiosa. A aposta da Apple TV+ passeia pelo lúdico para observar a figura de tal pioneira artista, tentando adivinhar o que se passava em sua mente, construindo arcos a partir de seus enigmáticos poemas. Tudo isso com uma ambientação de época, mas usando linguagens e atitudes do século XXI. Por exemplo, a questão da sexualidade é algo comum na vida dos jovens protagonistas, ao mesmo tempo que Emily é proibida de publicar seus trabalhos por ser uma mulher.

    Constrói-se um mundo paradoxal, formada por regras e absurdas, que se aproxima e se afasta da realidade, ao mesmo tempo. Apesar de usar humor para quebrar expectativas, a concepção de tal universo é feito de forma natural, equilibrada por um roteiro inteligente e sarcástico — onde seus toques de exagero são justificados pela fértil imaginação da protagonista, quase como um crossover de Euphoria com Maria Antonieta. Afinal, se o trabalho de Emily Dickinson foi considerado moderno para seu tempo, porque não trazê-lo para algo mais próximo do moderno atual? Se render sequências como a festa de "Wild Nights", não tem problemas. Aliás, a trilha sonora torna-se essencial nessa missão e merece destaque.

    Por vezes, os dramas de Emily podem parecer infantis demais, porém a maior parte deles consegue trazer algo tangível para o debate, perambulando entre seus mundos não tão opostos assim. Algo fútil como o desejo de ver o circo se torna uma metáfora de aceitação, cercada por uma critica sobre hipocrisia, capaz de tocar o espectador e ainda conversar com os dias atuais. Tudo isso para o episódio seguinte surgir com uma festa natalina, com direito a sátira de outra figura literária, numa ótima participação de Zosia Mamet. Inclusive, as escalações de Wiz KhalifaJohn Mulaney em papéis inusitados são as cerejas do bolo, compondo ainda mais o aspecto politicamente incorreto. 

    Um dos temas centrais da série é o relacionamento de Emily e Sue (Ella Hunt). Se um possível romance entre cunhadas foi debatido por historiadores, aqui torna-se uma realidade, ainda que presa sob as limitações da época em que vivem. Tais empecilhos e as performances honestas de suas intérpretes entregam algo que ganha a torcida do público, mesmo sabendo que a história real nunca permitirá um final feliz tradicional. O defeito surge no pouco desenvolvimento da órfã, algo que acaba sendo recorrente entre os coadjuvantes de Dickinson. O foco em Emily faz que seus companheiros de cena se tornem irregulares e sigam apenas as necessidades de roteiro, com exceção de seu pai (Toby Huss) e irmã Lavínia (Anna Baryshnikov, uma revelação) — mesmo que a última fique associada com a função de alívio cômico junto com a mãe, Sra. Dickinson (Jane Krakowski, que demora para encontrar seu tom).

    O charme de Dickinson encontra-se mesmo na protagonista, não somente pelo talento de Steinfeld, mas pela forma de humanizar a personagem, mesmo num cenário tão fantasioso. É palpável a sensação de não-pertencimento numa época que não a entende, mas a série não hesita em condenar seus erros e futilidades, ao mesmo tempo. Se a história retrata Emily como uma reclusa, tal série a pinta como uma rebelde pioneira, numa batalha constante contra os limites impostos em sua visão de mundo. E quem pode dizer que essa é uma versão errada da poetisa? Uma história escrita por homens, que ignorou a voz feminina por séculos? O desejo aqui é apenas usar as palavras geniais de uma artista icônica para conversar com a geração atual. E essa missão é cumprida.

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