Nota: 4,0 / 5,0
Há certas verdades universais que qualquer mulher, independente do nível de envolvimento com o feminismo, consegue captar. A linha tênue entre o que é sensibilidade e o que é lido como exagero, entre o que é um fato e o que é uma fake news, entre a crença e o julgamento é possível ser entendido não importa a hora, a época, o background. Inacreditável parte da crença nesta ideia para contar uma história revoltante e costurada com os melhores artifícios da televisão: uma investigação episódica, personagens humanizados e falhos e atuações primas de Toni Collette e Merritt Wever.
Os oito episódios partem de uma história real contada em um artigo vencedor do prêmio Pulitzer, e conta a história de uma jovem, Marie (Kaitlyn Dever), que denuncia ter sido estuprada dentro de sua própria casa. Poucos dias depois da denúncia, após uma série de desconfianças de suas muitas mães adotivas e da própria polícia, Marie revela que a denúncia é falsa e que ela jamais sofreu abuso.
É claro que a repercussão da suposta denúncia falsa é imensa, e quem sofre com isso é a própria jovem. O maior ponto de angústia nessa narrativa é a incerteza, pontuada na história tanto com elementos de câmera, na disposição dos objetos em cena e acima de tudo na figura não totalmente confiável, mas perfeitamente crível, da própria Marie. A dúvida aqui é o ponto chave: Marie tem quase certeza de ter sofrido um abuso, de ter passado por algum trauma, mas não pode afirmar com absoluta certeza porque foi praticamente coagida a voltar atrás em sua palavra. Ela repentinamente se transforma na vilã da própria história, e as consequências sociais de uma pessoa já psicologicamente sensível — isolamento, questionamentos, o rebaixamento e a eventual perda de emprego e auxílios, além da gigantesca humilhação — são particularmente catastróficas.
Paralelamente à história de dúvidas e gaslighting de Marie, o público é apresentado à investigadora Karen Duvall (Wever), que investiga um caso de estupro a muitos quilômetros da Washington onde Marie vive. A contrapartida e a diferença de cenário são expostas de forma eficiente, ainda que pouco sutil. Enquanto Marie foi ouvida de maneira brusca e sem tato apenas por policiais homens, fazendo perguntas indiscretas sem a menor sensibilidade necessária, Duvall trata a vítima, Amber Stevenson (Danielle Macdonald), de forma a fazê-la se sentir confiante em si mesma e sem medo, respeitando o tempo da dor e da cura.
O primeiro baque deste contraponto é justamente a diferença gritante entre as visões masculina e feminina, exposto na diferença com que Marie e Amber são tratadas nas investigações dos casos — que, até o último momento, não chegam a ser ligados de forma alguma. Por acaso, Karen Duvall descobre que sua investigação é muito parecida com a de outra detetive, que trabalha junto ao seu marido. É assim que Toni Collette entra na história interpretando a rígida Detetive Grace Rasmussen, e as duas passam a trabalhar juntas, colhendo as pistas que eventualmente as levam ao culpado.
Para além de ser uma visão extremamente sensível e pontual sobre empatia e delicadeza necessárias ao se trabalhar com vítimas de abuso, seja ele psicológico ou físico, Inacreditável não mede esforços para explicar o quanto a negligência policial foi um ponto chave para atrasar a captura e prejudicar de forma indelével uma das vítimas e, consequentemente, as outras dezenas.
De uma certa forma, trata-se de uma produção que conversa diretamente com outra minissérie recente da Netflix. Olhos que Condenam, de Ava DuVernay, é extremamente enfática ao tratar de racismo histórico e estrutural. Embora Inacreditável tenha uma origem e um objetivo diferentes, ambas estão na mesma linha de raciocínio ao denunciarem os abusos de autoridade e questionarem o papel destas forças na formação da sociedade e do pensamento coletivo.
Aliado a isso está o texto extremamente consciente de lugar de fala dos roteiristas Susannah Grant e Michael Chabon. Depois de provar ser uma força da comédia em Fora de Série, Kaitlyn Dever faz um exímio trabalho de nuance com sua personagem, que navega com facilidade entre ser uma pessoa ao mesmo tempo sensibilizada e totalmente determinada em não demonstrar suas fraquezas para qualquer um. A angústia está justamente em seu jeito calado e retraído, que faz de sua história ainda mais dolorosa: a solidão com que ela lida com todo o caso é talvez o ponto mais triste de todos. Ninguém deveria ser obrigado a sobreviver a um trauma sem amigos e amor.
Por fim, Inacreditável talvez seja a narrativa perfeita para um 2019 doloroso e tão politicamente divisivo. A história, apesar de dura, passa longe de ser excessivamente dramática e flerta de forma direta com uma realidade em que ameaças a minorias são uma triste rotina. Paralelamente, o ponto de esperança também está lá. A trama pode até se alongar demais em pormenores da investigação que não são exatamente interessantes ou inéditos, mas a catarse é tão rica, dolorosa e emocionante que transforma todo o conjunto em algo mais do que especial.