Nota: 4,5 / 5,0
A prática de salgar a terra é algo que tem origem no antigo Império Romano. Trata-se de uma tática que serve para tornar o solo infértil, utilizada pelo então crescente império para fazer com que territórios derrotados se tornassem inabitáveis. O ato não deixa a terra improdutiva eternamente — com o tempo e as chuvas, é possível que volte a crescer vida em um território outrora salgado. Mas a consequência imediata do costume é que alguém vai embora, e deixa atrás de si um ambiente vazio, inóspito.
Quando falamos sobre adolescência, e sobre séries ou filmes que buscam retratar os conturbados anos do ensino médio, estamos geralmente diante de produções que enxergam tudo como definitivo e eterno. Bailes de formatura, romances, o caráter decisório dos jogos de futebol americano, tudo costuma ser visto como derrador. Como se a vida acabasse no momento em que um jovem adulto põe os pés na faculdade, e tudo a partir dali fosse exatamente como uma terra salgada — infértil, morto, parado.
Em um determinado momento no episódio final da primeira temporada de Euphoria, Cassie (Sydney Sweeney), Kat (Barbie Ferreira), Jules (Hunter Schafer), Lexi (Maude Apattow), Maddy (Alexa Demie) e Rue (Zendaya) estão sentadas à mesa no baile formal e discutem sobre o que faz com que muito se enxergue o ensino médio como o auge da vida de uma pessoa. No geral, elas discordam que aquele seja o melhor momento para qualquer uma delas. “Acho que estou em 100%”, declara Jules, na contramão de todas as outras. “Mas, tipo, eu acho que eu posso chegar a 150.”
O que faz de Euphoria algo genuinamente diferente na televisão não é a abordagem sombria de todos os arquétipos de um drama high school. A série de Sam Levinson está longe de ser a primeira produção que se vende como “um retrato realista da adolescência” — e sequer poderia sê-lo, tendo em vista até mesmo que se baseia na série homônima israelense, no ar entre 2012 e 2013. Mas Kids (1995) e Spring Breakers (2014) já foram sem filtro ao centro da questão muito antes. Skins (2007-2013) foi, para muitos, o que definiu uma geração no sentido de tratar abertamente os problemas psicológicos pertinentes na adolescência, o abuso de substância, os lares fraturados e as máscaras usadas para que nada disso seja visível em sociedade. Beleza Americana e Réquiem para um Sonho, como pontuou Bruno Carmelo no seu texto de primeiras impressões, escancararam o American Way of Life sem movimentos comedidos. O que mais há para ser dito aqui?
De fato, a glamourização do retrato nu e cru da adolescência da Geração Z — movida a aplicativos e mais habituada aos espectros da sexualidade, entre tantos lugares-comum como as líderes de torcida tão descerebradas quanto sexualmente cobiçadas, a garota nova na cidade, o quarterback imbatível, a amiga gorda que serve de chaveirinho para o grupo e a outsider que se vê como absolutamente genuína e superior a todos — é a porta de entrada para a série. Grande partes das conversas antes de a série estrear giravam em torno do excesso de drogas, do clima pesado e da quantidade absurda de nudes — vide a famosa cena que mostra close-ups de 30 pênis em uma curta sequência, exibida no segundo episódio.
Mas Euphoria se distancia do cansativo clichê na mesma velocidade em que Rue inventa mentiras nas suas primeiras reuniões dos Narcóticos Anônimos.
Se o início da série — especificamente, o primeiro episódio — se comporta como um teste, uma confusão de banalidades em que é impossível discernir se estamos diante de um comentário irônico sobre a modernidade ou apenas mais uma entre a profusão de séries ou filmes que tentam sem sucesso romper paradigmas, Euphoria rapidamente ganha foco nos episódios seguintes quando se dedica especificamente a cada um dos personagens centrais e destrói cada uma das fachadas com histórias complexas e ricas de adolescentes ao mesmo tempo entediados, nervosos, impulsivos e apaixonados.
Ao mesmo tempo em que cada um dos personagens tem algo com que brincar, das descobertas sexuais empoderadoras de Kat ao surpreendentemente doce arco narrativo de Cassie, a espinha dorsal dos oito episódios é Rue. Zendaya tem uma atuação visceral, e a série se transforma em um mostruário da extensão de seu talento — e serve, estrategicamente, para desvencilhar a atriz de vez da imagem de “garota do Disney Channel”. Toda a narrativa é dependente dela não apenas porque Rue é a narradora onisciente, mas porque ela é a porta de entrada do espectador para toda a história. Trata-se de uma das personagens mais delicadas que a TV apresentou nos últimos tempos, navegando no limiar entre a junkie decadente e a necessária auto-absolvição que é requerida para qualquer arco de redenção como este.
Zendaya se entrega a Rue com paixão visível, navegando com facilidade impressionante entre os altos e baixos da personagem. O jeito possivelmente exagerado de Rue — suas gesticulações, os tiques, a repetição de movimentos e o olhar vidrado — logo ganha uma justificativa quando os aspectos de uma possível disfunção psicológica são primeiro pontuados com delicadeza, depois escancarados no excelente episódio 7, “The Trials and Tribulations of Trying to Pee While Depressed”. É difícil não sentir seu desconforto e o seu desespero como elementos palpáveis na primeira vez em que ela beija Jules, quando grita com Fezco (Angus Cloud) no momento em que ele se recusa a vender drogas para ela, ou quando ela procura por Gia (Storm Reid) desesperadamente na feira de 4 de julho, e enxerga com clareza a influência que impõe sobre a irmã. A maleabilidade e o carisma que Zendaya empresta a Detetive Bennett, no mesmo episódio 7, são completamente opostos à timidez que recai sobre ela todas as vezes em que é confrontada pela sexualidade livre de Jules. Mas raramente seus trejeitos soam como superficiais ou forçados, pois a personalidade de Rue é construída sobre uma base sólida que a permite ser tantas coisas ao mesmo tempo.
O tipo de sentimento catártico que a personagem provoca está diretamente ligado aos trabalhos de edição e direção empregados por Sam Levinson — showrunner e roteirista, bem como diretor de cinco dos oito episódios. O jovem produtor pega emprestados elementos de sua própria juventude para transformar Rue em uma personagem completa, e mais do que isso, transformar o aspecto lisérgico e chapado do efeito das drogas em uma fotografia vibrante, colorida e neón, altamente confiante no seu próprio estilo para capturar a audiência e empregar um senso de identidade à série.
Levinson utiliza o efeito desconcertante das luzes estouradas para representar as viagens alucinógenas, aliando isso a uma direção que beira o claustrofóbico em determinados momentos, tudo isso em prol de aspectos técnicos que não apenas acrescentem à história que está sendo contada, mas que sejam por si só elementos discerníveis da narrativa, pontos fixos que existem para localizar o espectador entre sequências oníricas e os lampejos de sobriedade. Tudo é pontuado com objetivos claros, e nessas curtas oito horas, nada é desperdiçado.
Outro ponto interessante ainda tratando-se de direção é que todos os episódios que não são comandados por Levinson são dirigidos por mulheres — respectivamente, Augustine Frizzell (“Pilot”, episódio 1), Jennifer Morrison (“'03 Bonnie and Clyde”, episódio 5) e Pippa Bianco (“The Next Episode”, episódio 6). Isso é particularmente importante quando estamos diante de uma produção que lida de forma tão pungente com a nudez feminina.
Tudo isso é um indicativo daquilo a que a série se presta. Nas palavras do próprio Levinson, “Euphoria é sobre amor. É sobre ser visto, ouvido e conhecido. É sobre como, se você mantiver seu coração aberto, há pessoas que podem mudar a sua vida. Isso não cura tudo, mas com certeza ajuda para c******.”
A abordagem obscura de tudo o que faz parte do clichê dos dramas de ensino médio é diferencial em Euphoria porque a série o tempo todo sabe que aquilo não é eterno. Ao invés de mostrar adolescentes que acreditam piamente que aquilo que vivem antes de ingressarem na vida adulta é para sempre — outro estereótipo cansado de adolescentes na TV —, Euphoria trata cada um daqueles personagens como seres completos, e entende que eles sabem que aquilo está longe de ser o fim.
Você se apaixona pelo traficante, antes de lembrar que, no fim das contas, ele ainda é um traficante — mas um que cuida da avó acamada e faz tudo por ela. Tudo no entorno das histórias de Kat e Cassie, tão diferentes mas tão semelhantes, passa pelas múltiplas formas de empoderamento e manipulação que podem funcionar contra ou a favor de uma pessoa. A história de Jules é libertadora porque qualquer um de seus problemas está muito além de sua transição, e fascina pela aparente ausência do medo. Até o delicado arco de Nate (Jacob Elordi) e Maddy tem suas nuances, embora algumas vezes estas não estejam bem delineadas.
Isso porque, quando o grande vilão da série é o arquétipo (completamente válido) do homem branco, rico e poderoso que passa por cima de tudo e todos e nunca é punido por isso, a linha que o separa de um personagem complexo para um vilão novelesco é tênue. É aí que reside o maior defeito de Euphoria, que durante dois ou três episódios trata Nate como um jovem extremamente unilateral e simplório. A justaposição entre ele e Cal (Eric Dane), o pai, é usada a favor desta história no episódio final. Ambos estão longe de serem boas pessoas, mas eles sabem disso não apenas um em relação ao outro, mas a respeito de si mesmos.
Por fim, o que encanta sobre Rue e Jules é como elas representam exatos opostos, que se atraem pela diferença. A depressão e a dependência de Rue são, da forma mais endurecida possível, o retrato de uma geração doente e fracassada, em um ciclo vicioso de autoflagelação e derrota. Dói. Jules é o espelho do outro lado desta moeda, um espírito anarquista, o Império Romano que foi embora e deixou a terra salgada atrás de si. De outro jeito, também dói.
Mas elas são adolescentes, e nada é eterno, enquanto tudo é exagerado. Mas quem é que nunca foi Jules no trem ou Rue na estação?