Algum pesquisador do cinema brasileiro deveria pesquisar - caso já não o esteja fazendo - a herança de Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007) no imaginário brasileiro do banditismo e das favelas.
Ambos os projetos parecem ter traduzido a descrença social nas instituições e a busca por justiçamento. Apesar de si próprios, conquistaram os espectadores por aspectos indesejados: ao invés de se identificar com Buscapé, parte considerável do público preferiu o extremismo de Zé Pequeno; ao invés de questionar os atos do anti-herói Capitão Nascimento, preferiram enxergar no sujeito truculento uma figura exemplar da justiça a qualquer preço.
Agora, na ausência de grandes produções policiais capazes de canalizar as tensões do cenário político polarizado, as séries de televisão se arriscam no imaginário das favelas como empolgantes campos de batalha onde vivem os mais perigosos bandidos do país. Rotas do Ódio, Impuros e, em menor medida, Pacto de Sangue já exploravam os prazeres da corrupção ficcionalizada, liderada em geral por representantes violentos do poder.
A Divisão estende esta proposta: desde a primeira cena, no Rio de Janeiro dos anos 1990, um policial (Bruce Gomlevsky) efetua um discurso curiosamente acadêmico na televisão sobre os excessos da violência policial e os crimes praticados pelo governo em nome do combate à criminalidade. Ao mesmo tempo, dois sequestros ocorrem na praia, liderados pelos policiais Santiago (Erom Cordeiro) e Roberta (Natália Lage).
Por um lado, o discurso verbal critica os excessos e a violência. Por outro lado, a imagem utiliza todas as ferramentas possíveis para tornar essa violência empolgante para o espectador: montagem fragmentada, trilha sonora rock para ilustrar a brutalidade, e depois tiros à queima-roupa e o sangue literalmente espirrando na tela da televisão. Esta linguagem se mantém nas primeiras duas horas em que as controversas figuras da D.A.S. (Divisão Antissequestro) discutem as melhores maneiras de salvar vítimas (e conseguir algum dinheiro na transação).
Nos primeiros capítulos da série, apresentados aos jornalistas, o diretor Vicente Amorim parece dividido entre criticar a violência e exaltá-la, entre apontar as derivas do sistema de modo crítico e sugerir que as coisas são assim mesmo, e que portanto nada vai mudar, de modo acrítico. A Divisão, como sugere o título, se constrói sobre um delicado equilíbrio de pensamentos opostos sobre o papel da polícia dentro da sociedade brasileira.
Para o espectador em busca dos prazeres da ação, a série cumprirá o seu propósito. O ritmo é acelerado, os planos de sequestro e de resgate são elaborados sem delongas, e os personagens não têm muito tempo para refletir sobre as decisões tomadas. Para um terreno de urgência, Amorim imprime uma dinâmica igualmente brusca de ação e reação, de ataque e sobrevivência. Os atores estão sempre ofegantes, suando em bicas. Neste meio, introduzem-se fortes cenas de assassinato e de tortura, além de sexo do herói com uma bela mulher - e a nudez dela é muito mais explorada do que a dele, é claro.
Pode-se dizer que o projeto embarca no ideal consagrado do homem violento que, por coragem e senso de retidão, faz justiça com as próprias mãos. Afinal, o sistema "legal" (advogados, policiais, tribunais, investigadores) estaria corrompido demais para tratar os casos com imparcialidade. Então, se todos serão corruptos, que eu seja também... A meu favor. Consequentemente, cada policial corrupto, bandido sanguinário e político ganancioso age em nome de si próprio.
O maior questionamento, diante do início explosivo de A Divisão, é saber se existe algum questionamento crítico em relação às atitudes em tela, e se qualquer outra forma de lidar com o problema será cogitada fora da bolha das armas e dos sequestos. Afinal, o fato de lançar mão de personagens moralmente controversos e dizer "não cabe a mim me posicionar" corresponde, voluntariamente ou não, a uma forma de posicionamento.