O sucesso de Stranger Things é uma coisa estranha.
A terceira e nova temporada chega em 4 de julho inteirinha de uma vez à Netflix, e a palavra de ordem é maratonar todos episódios de uma só vez. Não existe consumo moderado. Talvez essa natureza ansiosa faça parte do prazer da experiência, mas fico pensando se o produto não teria a ganhar se os capítulos fossem entregues um por semana, e não despejados numa só leva. Mas é assim que o público gosta.
É estranho, mas parece que são as estranhezas que fazem de Stranger Things um produto tão fascinante.
Será que esse fascínio existe porque são muitos elementos fascinantes misturados -- alguns que até poderiam ser verdade? Ou será que é por que Stranger Things realmente acertou na dosagem de uma fórmula mágica, de um jeito que produtos semelhantes não conseguiram?
É difícil de responder. O sucesso de Stranger Things desde 2016 ainda é tratado pela crítica especializada como algo inesperado e inexplicável. Outros filmes e séries tentaram evocar os anos 1980 e suas peculiaridades, mas nenhum produto conseguiu uma aclamação que chegasse aos pés. O fato é que não há muita coisa parecida com Stranger Things na cultura pop atualmente. E é claro que isso não é algo bom.
Nasci no finalzinho dos 1970, então é natural que os 1980s sejam a minha década favorita (um pouco à frente dos 90). Foi o momento em que os conceitos de entretenimento popular se estabeleceram, num coquetel irresistível vindo de todos os lados possíveis. Foi a época dos filmes de Steven Spielberg, John Hughes e outros diretores-autores; da queda e ressurgimento dos videogames; da explosão das séries de TV e desenhos animados, ocidentais ou orientais; da música pop/rock de qualquer subgênero, para dançar, sofrer ou pensar; da consolidação das "revistinhas" como ferramenta de primeira leitura; dos álbuns de figurinhas, dos jogos de tabuleiro, da literatura infanto-juvenil... De tudo isso e muito mais.
Era uma época mais primitiva, sem as facilidades da internet, a onipresença dos smartphones, as conversas e discussões intermináveis nas redes sociais. Consumíamos aquela explosão de cultura pop como se não houvesse amanhã, mas também nos dedicávamos a atividades mais "puras". Encontrávamos os grupos de amigos ao vivo, brincávamos na rua e no quintal, investíamos na imaginação e no faz-de-conta. Foi esse aroma de espírito jovem, baseado em inocência, curiosidade e descoberta, que Stranger Things capturou, propagou e homenageou tão bem.
É natural que a estética dos 1980s ainda exerça tamanho fascínio, visto o enorme abismo cultural e tecnológico que existe em relação aos tempos atuais. O grande mérito de Stranger Things foi justamente captar as referências mais óbvias daquela época e as traduzir na forma de um único produto, conquistando um público jovem demais para ter experimentado tudo isso pessoalmente. Para os mais novos, a série exibe um admirável mundo velho/novo encharcado de cores vivas, sabores fantásticos e artefatos analógicos que pouco se assemelham aos que utilizamos hoje. Para os mais velhos, que tiveram a sorte (ou não) de viver aquela época, soa como uma baforada nostálgica de tempos que não voltam mais.
Mas não é porque Stranger Things acertou tão bem no alvo que seja só digna de aplausos. Não vou entrar no mérito de a série exagerar na representação estilizada dos anos 80, de abusar de estereótipos e de reciclar clichês. De todos os problemas, o maior é a incômoda persistência da série, que a meu ver não faz bem para o mundo do entretenimento. Sou daqueles que acha que o final definitivo deveria ter vindo do jeito mais agridoce possível logo na primeira temporada. Seria um desfecho tão fascinante quanto inesperado, e a maneira perfeita de encerrar a história e enviá-la merecidamente para a eternidade do imaginário popular.
Mas não é assim que a atual roda da cultura pop gira. Aparentemente, para algo perdurar é preciso que continue existindo, mesmo que seja dependente de uma fórmula repetida à exaustão a cada ano que passa, temporada após temporada. Essa é uma contradição difícil de engolir: temos uma infinidade de informação a nossa disposição, podemos acessar praticamente tudo o que já foi produzido antes, mas a grande maioria parece só dar valor ao novo -- mesmo que seja algo velho disfarçado de novidade.
É inegável que a consolidação de Stranger Things como grife global seja merecida. Mas é necessário que a série saia de cena logo para dar espaço a outros produtos de qualidade que ainda devem surgir, sejam baseados em nostalgia ou não.
O grande público já está pronto para isso, e merece.
Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema, apresentador do programa Mitos do Pop e consome entretenimento desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.