A Amazon Prime Video lançou na última semana uma de seus maiores projetos para 2019: Good Omens, adaptação do livro escrito por Terry Pratchett e Neil Gaiman - este último, autor de American Gods e Sandman.
O projeto, considerado "inadaptável" durante décadas, foi finalmente levado à televisão pelas mãos do próprio Gaiman, trabalhando como showrunner pela primeira vez. Muito preocupado em honrar a memória do falecido Pratchett, ele buscou ser o mais fiel possível à estrutura insana do texto, que efetua várias idas e vindas no tempo para contar a história sobre anjos e demônios.
Para quem ainda não teve contato com a trama, Good Omens gira em torno do anjo Aziraphale (Michael Sheen) e do demônio Crowley (David Tennant). Depois de seis mil anos vivendo na Terra, eles se tornaram amigos, apesar de receberem ordens opostas de seus superiores. Quando descobrem que o Anticristo está na Terra e que o Apocalipse acontecerá dentro de poucos dias, unem forças secretamente para impedir a catástrofe.
O AdoroCinema viajou a Londres, a convite da Amazon Prime Video, para assistir à série e conversar com Neil Gaiman e o diretor Douglas MacKinnon. Esta foi a oportunidade de conversar sobre temas tão distintos quanto a voz de Deus, a etnia de Adão e Eva, a ganância dos produtores de televisão e o acesso de fúria de Sheen com um jornalista:
Como foi a experiência de showrunner, podendo tomar decisões artísticas na série?
Neil Gaiman: Trabalhar como roteirista é bem diferente. Foi algo relativamente prazeroso e sem stress. Ninguém me fazia cobranças: eu escrevi, como prometi a Terry Pratchett que faria, depois fiz a adaptação e dividi o livro em seis partes. A cada cinquenta páginas, eu dizia: “Esse vai ser o episódio um, esse vai ser o episódio dois, Crowley e Aziraphale se reúnem aqui no episódio 3...” Pronto, vou escrever um pequeno filme. Isso tudo foi simples.
O problema é que eu prometi a Terry Pratchett que faria uma série que ele teria gostado de ver. Aprendi com minhas experiências anteriores na televisão, algumas bem-sucedidas e outras não, que a chave do sucesso não era a qualidade do roteiro, para começar. Isso dependia mais do que iria para a televisão no final. Então, pensei: “Preciso estar em uma posição onde eu possa controlar isso, onde eu tenha um diretor com quem eu possa dividir uma visão, onde eu possa escolher os atores que vejo na minha cabeça”.
Sabe, produtores não entendem muito sobre roteiros. Eu gostaria que fosse o caso, mas não é. Muitas vezes, o produtor diz: “Temos esta quantia de dinheiro, temos este roteiro. Esta cena aqui custa caro, se a retirarmos, ganharmos um dia inteiro de filmagem, e ninguém vai sentir a falta dela.” Eles falham completamente em compreender que, se retirarem aquela cena, nada do que vem antes ou depois faz sentido. Os produtores sempre agiram dessa maneira. Eu sabia que, para honrar Terry, eu precisava estar numa posição em que pudesse dizer não. Quando alguém me propusesse: “Vamos tirar a cena de Shakespeare na arena?”, eu diria: “Não, não vamos”. Então dizia: “Se você precisa economizar, nós podemos tirar esta outra cena de que você realmente gosta, mas que não prejudica a compreensão”.
Douglas MacKinnon: No fim das contas, o importante era deixar o criador da história no comando da história. Neil precisava responder a questões de orçamento, que são comuns, porque você nunca tem o dinheiro suficiente. Em determinado momento, eu falei para os produtores: “Tudo o que eu quero fazer é manter estas partes que eu adoro”, e eles me responderam: “Mas nós também queremos isso!”. Ora, eles não percebiam que algumas partes são inegociáveis, elas precisam existir para se contar esta história.
Nós decidimos colaborar juntos alguns anos atrás para este projeto, e acho que eu consegui concretizá-lo. Algo acontece, às vezes, quando você tem um bom texto e um bom projeto: a visão do texto acaba se sobrepondo ao próprio autor. O projeto se torna autônomo, e a produção precisa acompanhá-lo. Apesar de Neil Gaiman estar presente como escritor, a posição de showrunner se torna mais importante para nós porque a visão do texto se sobrepõe, e ele se separa da função de roteirista. Isso é ótimo para um diretor.
Neil Gaiman: Eu também tinha o sentimento de estar fazendo o projeto para o Terry Pratchett. Trabalhar como showrunner, pessoalmente, poderia não ser nada bom, porque eu estou aberto a mudanças o tempo todo. Fico feliz em ver as outras pessoas felizes, e quando elas sugerem: “Que tal se a gente tentasse assim?”, eu respondo: “Pode funcionar. Vá em frente!”. No entanto, o fato de fazer algo para o Terry Pratchett, que está morto, e tendo uma boa ideia do que ele gostaria ou não de ver, é algo totalmente diferente. Então quando os produtores vêm até mim e dizem: “A cena de Agnes Nutter queimando na fogueira é cara demais, mas nós achamos uma solução, porque somos produtores. Você deveria mostrar pedaços de madeira voando pelos ares e um narrador explicando o que aconteceu”. Eu perguntava à voz de Terry, no meu ombro: “O que você acha disso?” e a voz de Terry respondia: “Que merda!”. Então eu decretava: “Isso não vai acontecer. Eu escrevi essa cena porque Terry amava Agnes Nutter. Ele queria que essa cena fosse ótima e eu quero fazer com que ela seja ótima. Vamos mantê-la”.
É verdade que Michael Sheen entrou na série porque se declarou fã do livro?
Neil Gaiman: O que aconteceu com Michael é curioso. Foi uma entrevista específica em que ele falou sobre mim, e ele estava muito rabugento para responder. Um jornalista perguntou: “Michael, você está trabalhando em um filme de gênero (acho que ele estava fazendo Crepúsculo na época), mas isso não está aquém do seu talento? Você é um ator bom demais para trabalhar nisso”. Michael ficou irritadíssimo de uma maneira que só o Michael consegue, com muita calma e educação. Ele começou a fazer uma longa defesa sobre como a melhor literatura dos últimos cinquenta anos foi feita por Stephen King e Neil Gaiman, e que o jornalista podia ir tomar naquele lugar.
Li isso e pensei: “Uau! Eu nunca fui defendido com tanto entusiasmo por um fã do País de Gales!”. Seria diferente se alguém tivesse perguntado, durante uma entrevista, o que ele estava lendo, e ele respondesse “Eu amo Neil Gaiman”. Este caso foi diferente: Michael defendeu a minha honra, e me usou como exemplo. Eu enviei um monte de livros para ele e incluí um bilhete: “De um fã para outro. Obrigado!”. Mas eu nunca esperava que uma parceria pudesse nascer deste episódio.
Vocês se preocuparam com a reação do público cristão conservador em relação às releituras sobre Adão e Eva, ou a crucificação de Cristo?
Neil Gaiman: Eu tomei uma decisão importante desde o início. Eu disse: “OK, Adão e Eva, no Jardim do Éden, não serão brancos”. Então, desde os primeiros cinco minutos, você tem que lidar com a voz de Deus, que é uma mulher interpretada por Frances McDormand, e você tem que lidar com Adão e Eva negros. Isso são apenas os primeiros cinco minutos. Você pode parar de assistir agora. Se ficar chateado ou ofendido, invente uma desculpa para parar de assistir agora porque você provavelmente vai ficar muito mais ofendido com outras coisas mais tarde, incluindo um anticristo de 11 anos de idade, que na verdade é um bom menino. Você sabe que vem coisa muito pior depois. A mensagem chega bem cedo, então as pessoas foram avisadas!
Na verdade, Terry e eu costumávamos conversar, quando escrevemos o livro, sobre o medo da reação dos cristãos fervorosos. Na época, Salman Rushdie estava escondido e nós brincávamos que podíamos entrar em contato com ele e talvez ir para o mesmo esconderijo. No entanto, foi muito engraçado e prazeroso descobrir, alguns meses depois da publicação, que fomos indicados para um prêmio de ficção religiosa. Descobri que o arcebispo da Cantuária era fã de Good Omens, e vários teólogos adoraram o livro!
Douglas MacKinnon: Teve o dia em que filmamos a crucificação, por exemplo. Eu sou ateu, mas disse ao ator que interpretou Jesus: “Nós não estamos aqui para ridicularizar, estamos aqui para tratar esse momento com respeito. Mesmo que você acredite que Jesus foi um ser sobrenatural ou um ser humano, o fato de ele defender a paz pelo mundo torna esta cena ainda mais cruel, de um ponto de vista humano. Neil e Terry partem do pressuposto que todos os seres humanos merecem ser respeitados e amados, para começar. Esta era a nossa preocupação durante toda a filmagem.
Neil Gaiman: Foi uma crucificação muito bonita e comovente, independentemente de crenças. Sim, nós estamos fazendo uma ficção cristã! Na verdade, esta é a minha segunda crucificação favorita de todos os tempos.
Douglas MacKinnon: Qual é a sua favorita?
Neil Gaiman: Monty Python em Busca do Cálice Sagrado!
Por que afirmou que a série se tornou mais oportuna agora do que quando escreveu o livro?
Neil Gaiman: Quando escrevemos o romance original, o mundo estava muito pacífico. No momento em que terminamos o primeiro rascunho, pensamos: “Será que as pessoas vão acreditar neste Apocalipse?”. Então nós recebemos críticas sobre como eram estranhos os trechos sobre a tensão internacional numa época em que as pessoas estavam se dando muito bem. Hoje, as pessoas perguntam: “Qual a diferença entre a série e o livro?”, e eu penso nesse episódio, porque as tensões internacionais são muito mais realistas hoje do que eram trinta anos atrás.
Douglas MacKinnon: Se o livro traz alguma mensagem política, ela diz respeito ao fato que a política está ficando muito mais polarizada em vários países, com extremismos por todos os lados. Nós temos um demônio e um anjo que chegaram há 6.000 anos e eles encontraram um jeito de viver juntos. Eles tomam um chá, uma taça de vinho, conversam, passeiam de carro pelo campo e ficam bem. Somente quando as forças polarizadas atacam de novo, tanto do céu quanto do inferno, é que as coisas começam a desmoronar. Talvez a mensagem seja que se nós nos comunicássemos um pouco mais e nos encaminhássemos à paz, ao invés da guerra, provavelmente estaríamos numa situação melhor.
Neil Gaiman: É um romance sobre opostos aprendendo a se relacionar: o céu e o inferno, os anjos e os demônios.
Você precisou reescrever cenas para se adequarem ao formato específico da série?
Neil Gaiman: A única personagem que eu consegui aprofundar, numa direção em que ela já estava indo, foi Pepper, no núcleo das crianças. Ela já era uma garotinha feliz e segura. Quando recebia uma bicicleta cor de rosa de presente, “por ser menina”, já considerava o presente machista. Isso foi trinta anos atrás! O fato de poder desenvolver a percepção dela e responder eloquentemente sobre o machismo foi um prazer, até porque as crianças da série são fantásticas.
Honestamente, as pessoas podem pensar que, como o livro foi escrito há trinta anos, teriam muitas coisas para atualizar, mas não foi o caso. Crowley tinha dois telefones antes, e agora um deles é um iPhone. Mas é claro que Aziraphale ainda vai ter um telefone antigo em sua escrivaninha. Uma passagem no livro indicada uma fita cassete, que depois virou um CD player.
Eu gostaria de ter precisado fazer mais atualizações, porque isso significaria que teríamos feito mais progresso, enquanto humanos, para eliminar problemas como o desmatamento da Amazônia, a matança de baleias e todas as questões que constituem problemas no livro, como a tensão internacional e a guerra. São coisas tão relevantes quanto eram há três décadas, e em alguns casos, ainda mais urgentes.