Enfim, Game of Thrones chegou ao fim.
Setenta e três episódios e mais de oito anos depois, o seriado inspirado na obra (inacabada) do mago George R.R. Martin alcançou seu aguardado desfecho. Foi exageradamente “rushado”, usando o jargão da internet que designa quando algo é feito às pressas e não deveria. Foi duramente criticado, porque fez muita gente questionar se houve coerência nas atitudes de certos personagens. Foi previsivelmente polêmico, porque não agradou a uma grande maioria, algo que seria quase impossível de ocorrer. Nada foi pouco em se tratando do maior produto televisivo da atualidade.
A dura verdade é que ninguém deveria ter grandes esperanças sobre o final da história. Retificando, todo mundo deveria saber o que esperar, porque se tem uma coisa em que Game of Thrones nunca falhou ao longo dos anos, foi em ser coerente a sua intenção de não agradar a ninguém. O último episódio apenas confirmou esse potencial.
Na noite do último domingo, o Twitter se dividiu em dois grupos bem distintos: aqueles que aceitaram o final com ressalvas; e aqueles que odiaram com todas as forças. Muito justo, afinal não se espera unanimidade em torno de algo tão popular. Nada tem o poder de agradar a todos, por melhor que pareça (Jesus Cristo que o diga). Além disso, há o fato de o programa do canal HBO ser baseado em uma obra original em construção. Martin não terminou de escrever o quinto livro, e pelo que tem admitido, nem começou o sexto. Só isso já seria uma justificativa para a versão televisiva não ser tão boa como deveria ser, pelo menos na opinião dos fãs de carteirinha -- e, aparentemente, a grande maioria do público se assume assim.
Ao que tudo indica, o final que vimos se desenrolar ao longo do episódio "The Iron Throne" foi condizente com o que o autor revelou anos atrás aos showrunners da série, D.B Weiss e David Benioff. Diz a lenda que Martin contou à dupla detalhes pouco específicos sobre como gostaria que a trama terminasse para cada personagem, com direito a três momentos "uau". Munidos das informações, eles tiveram a dura tarefa de ligar os pontos da história já escrita e definir o que seria exibido na TV nas derradeiras temporadas. Há quem diga (com certa razão) que eles não souberam realizar a tarefa com a propriedade que os produtos originais exigiam -- curiosamente, muitos dos que criticaram dessa forma nem mesmo leram os livros.
Sendo bem justo com as reclamações dos fãs, concordo que as duas últimas temporadas poderiam ter mais três ou quatro episódios cada. Se eu fosse o showrunner, os seis episódios desta última leva seriam expandidos para dez. Assunto não faltaria e ninguém reclamaria -- nem o elenco, equipe técnica, a emissora e muito menos o público.
E foram justamente Weiss e Benioff que definiram a reduzida quantidade de episódios das duas últmas temporadas. Pensando um pouco, dá para imaginar o porquê. Não foi porque a duração mais curta era suficiente para o que ainda havia a ser contado -- afinal, está claro que muitas informações importantes ficaram de fora. Mas sabemos agora que os dois serão os responsáveis pelo próximo filme de Star Wars, então isso dá o que pensar. Será que eles “rusharam” Game of Thrones para limpar a agenda mais rápido e assim se dedicarem de corpo e alma ao novo projeto? A decisão das temporadas enxutas foi anunciada em 2016, enquanto o compromisso da dupla com Star Wars foi revelado em 2018. Nunca saberemos as verdadeiras motivações, mas imagino que até eles secretamente concordam que GoT merecia mais tempo para se desenvolver na TV.
Mas não vi só críticas à pressa. Muita gente chiou sobre a maneira como os personagens se desenvolveram e se comportaram, sobre como a magia e a fantasia foram deixadas de lado no desfecho e como certas decisões pareceram vir “do nada”. Alguns fãs também cobraram coerência nas atitudes dos personagens, como se cada pessoa fosse obrigada a sempre agir de acordo com o que vem fazendo ao longo da vida (para esses eu digo: não é assim que acontece quando os anos vão passando). Todas as reclamações são válidas, de uma forma ou outra, mas não teriam feito diferença no resultado final -- porque como sabemos, nem fazer uma petição adiantou.
Esta é uma discussão muito mais profunda e inflamada do que aquela gerada pelo final de Lost em 2010. Naquela época, quando as redes sociais eram bem menos barulhentas, o desfecho da série também dividiu opiniões, mas as reclamações soavam mais inocentes. Talvez porque não houvesse um material original de inspiração, já que a história saiu das cabeças dos mesmos criadores que a colocaram no ar. Mesmo assim, o público investiu paixão e instensidade na elaboração de seus "finais ideais". É isso o que acontece quando uma obra criativa é criada e desenvolvida de modo gradativo: cada fã acaba idealizando sua versão particular da história do modo que lhe for mais conveniente.
Foi isso o que ocorreu também com Game of Thrones, mas com muito mais agressividade, algo típico desses tempos inflamados em que vivemos. Cada fã que investiu tempo e dinheiro (porque assinar a HBO não é barato) se sentiu no pleno direito de conceber uma versão da história que estivesse de acordo com seus anseios, necessidades e crenças. Cada um dos milhões de indivíduos que mergulhou em novos episódios nas noites de domingo criou dentro de si uma conclusão ideal para cada personagem, imaginando quem mereceria sentar no Trono de Ferro (que derreteu), quem deveria ter morrido ou sobrevivido, como deveria ser cada discurso que levasse a cada grande decisão.
Infelizmente, todos esses milhões (bilhões?) de desfechos virtuais possíveis não têm validade alguma, pois estávamos assistindo a uma série de televisão fechada, e não a um produto colaborativo. Consumimos o que o canal HBO e seus produtores quiseram nos oferecer, com o aval do autor original: George R.R. Martin pode até ter discordado de algumas decisões, mas vendeu os direitos da obra por um belo dinheiro (duvido que o escritor esteja realmente reclamando). Não quero ser reducionista aqui e citar aquele chavão que os fãs não têm direito a dar opinião. Muito pelo contrário. Só estou lembrando que todos nós aceitamos participar dessa experiência e sabíamos que nossa única função seria a de espectadores. Fomos obrigados a aceitar o que viesse, para o bem ou mal.
No instante em que Jaime Lannister empurra o pequeno Bran do alto da torre no final do episódio 1, percebemos que Game of Thrones não iria nos facilitar a vida. Quando o então único herói Ned Stark teve a cabeça cortada sem misericordia, continuamos a assistir mesmo assim, sabendo que o pior ainda estaria por vir. E assim o jogo foi rolando, temporada após temporada, desgraça atrás de desgraça -- Casamento Vermelho, violência sexual, execuções em massa, gargantas cortadas, cabeças esmagadas, crueldade com menores.Um excesso de cenas de nudez e sexo desconfortável que pareciam não levar a nada. E muitos elementos mágicos -- dragões, zumbis de gelo, crianças da floresta, bruxaria e misticismo -- que nos fizeram sonhar acordados, mas eram só cortina de fumaça (como a de Lost) para o verdadeiro espírito de Game of Thrones: a pura e odiosa politicagem que fomenta o jogo dos tronos.
Nessa dura viagem que foi amar Game of Thrones, o destino pode não ter sido tão agradável, mas a jornada compensou por tantos momentos memoráveis. Valeu a pena? E como valeu, cada minuto.
Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema, apresentador do programa Mitos do Pop e consome entretenimento desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World.