Nota: 5,0/5,0
Fazer comédia já é difícil. Rir da dor humana é ainda mais. Três anos atrás, Fleabag surgiu como uma comédia sarcástica e absurda, capaz de dar um soco no estômago no espectador em cada reviravolta emocional. Criadora e protagonista, Phoebe Waller-Bridge tomou um doce tempo para trazer a nova temporada. E, nossa, como cada minuto de espera valeu a pena.
Saltando um ano no tempo, Fleabag não tem visto sua irmã Claire (Sian Clifford), que segue casada com o arrogante Martin (Brett Gelman). Até que elas precisam se reencontrar num jantar de celebração do noivado do Pai (Bill Paterson) com Madrinha (Olivia Colman). Mesmo se o espectador não tiver esse contexto, o primeiro episódio da nova leva é uma obra-prima por si só. Começando do fim de uma louca noite, ele vai retomando a história de maneira tão instantânea e extravagante, que os sentimentos do público sobre cada personagem surgem como um instinto. Os dramas estão ali, as tiradas também, enquanto a quebra de quarta parede vai conduzindo a narrativa. É uma comédia de situação, que desenvolve indivíduos, mas brinca com o absurdo. Tudo em apenas 20 minutos por episódio.
A segunda temporada também apresenta um novo personagem: o Padre (Andrew Scott, roubando cenas desde Sherlock) responsável por realizar o casamento do Pai. Completamente fora dos padrões e com um charme politicamente incorreto, logo chama a atenção de Fleabag. Um relacionamento entre os dois é impossível, porém existe uma atração mais do que física da qual ela não consegue, e nem quer, escapar. Aqui, temas como sexo e religião são abordados, mas não de uma forma zombadora. Surgem apenas como analogia para descrever a busca de sua protagonista. Ela procura alguém que se preocupe de verdade? Apenas o deseja porque é pecado? É uma forma doentia de vingar de Deus? Ou auto sabotagem depois de finalmente conseguir um pouco de sorte? É amor verdadeiro? Não sabemos, pois nem Fleabag sabe.
A química entre Waller-Bridge e Scott é perfeita, tanto no drama quanto na comédia. De forma que é impossível não torcer que saia algo bom nessa conexão bizarra. Se a jovem vai para o inferno, nós iremos junto, pois torcemos pela alegria deles. Ou pelo menos algum tipo de paz de espírito. Basta ver como são hilárias as sequências deles debatendo religião (ou fugindo de raposas), enquanto a cena do confessionário no quarto episódio é brutalmente emocional, verdadeira e perturbadora. Ao mesmo tempo, a resolução é simples e sincera, pois não precisa criar dramalhões exagerados para manter a atenção do espectador ou criar uma trama mais "atraente". É aceitar quando algo não dará certo, sem culpa de ninguém. É ter um relacionamento conturbado com a irmã, mas largar tudo para ajudá-la na hora necessária. É apreciar os pequenos momentos bons com aquele que ama, mesmo afastado por tantas diferenças. É ver o belo (ou no caso, hilário) no ordinário.
Marca registrada da comédia, a quebra da quarta parede segue precisa, adicionando ainda mais humor na história. Porém, ao contrário de outras obras, esse recurso deixa de ser algo cômico usado apenas para se comunicar com o público. A partir dessa temporada, o espectador também faz parte da história, pois somos fração da louca mente da protagonista. Somos sua válvula de escape, uma espécie de segredo ainda invisível para aqueles que a cercam, que a ajuda na hora de percorrer seus problemas. Por isso é tão incrível ver como o Padre consegue perceber as distrações da moça, nos inserindo ainda mais na trama. E isso também outro tópico na lista de elogios que podem ser feitos a Phoebe Waller-Bridge. Pois se é complicado escrever esse recurso de forma inteligente, também é incrível ver como ela consegue interpretá-lo de forma natural e bem rápida (com destaque para suas diferentes emoções numa discussão do segundo episódio, por exemplo).
A quebra ainda ajuda a aprofundar a narrativa, mesmo com capítulos tão curtos. Afinal, se você parar para contar, a temporada completa de Fleabag tem duração menor que Vingadores: Ultimato. Nem por isso se torna mais superficial. A culpa pela perda de Boo (Jenny Rainsford) e a morte da mãe ainda são parte essencial da formação de Fleabag, mas estamos diante de uma versão mais madura da personagem — como pode ser visto a partir das participações de Fiona Shaw e Kristin Scott Thomas. Ela ainda é imperfeita, mas está tentando seguir em frente. Tem recaídas, mas sabe exatamente quando está errando e nos aponta isso. Um belo reforço nesse (tão necessário) desejo cutural de tirar personagens femininas de "caixinhas estereotipadas" e representar as mulheres complexas que existem pelo.
Esse é o bacana de Fleabag. Sua naturalidade. Todos aqueles retratados na tela têm sérios problemas, mas até o ser mais desprezível encontra seu momento de humanidade. Ao mesmo tempo, nada é escancarado na cara do espectador, através de algum monólogo exaltando sentimentos de forma épica. Na verdade, a maioria das longas declarações são até meio incômodas. Os detalhes caprichados que trazem o lado mais emocional a tona. Uma estatueta que representa demais (ou de menos); um sussurro de apelo e um corte de cabelo equivocado são exemplos do que formam tal roteiro eficiente. Para completar, trata-se de um elenco brilhante, com destaque para Waller-Bridge e Olivia Colman, a última construindo uma personagem adoravelmente desprezível.
E o melhor de tudo? Essa profundidade emocional segue acompanhada por tiradas sagazes hilárias, que — junto com uma edição sagaz e aquela dramática trilha principal — ajudam a conduzir de maneira que surpreenda a quem assiste. É algo que não vemos na TV em muito tempo, a tal ponto que Fleabag se tornou uma joia rara, merecendo ganhar mais apreço (e pode finalmente conseguir, por conta da popularidade crescente de Phoebe, também criadora de Killing Eve, outra coisa genial). Aparentemente, a segunda temporada será a última, e se for verdade, a comédia ganhou um final precioso. Só que fica um forte gostinho de "quero mais"...
No Brasil, Fleabag faz parte do catálogo da Amazon Prime.