Jessica Chastain não foi a primeira (e não será a última) a chamar atenção para o problemático e questionável tratamento das mulheres em Game of Thrones, mas sua mensagem foi a que mais chamou atenção recentemente.
A atriz usou a sua conta no Twitter nesta semana para se unir ao coro de vozes apontando insensibilidade na cena em que Sansa Stark (Sophie Turner) conversa com o Cão de Caça (Rory McCann) no episódio 4 da 8ª temporada, “The Last of the Starks.”
“Estupro não é uma ferramenta para fazer de uma personagem mais forte. Uma mulher não precisa ser vitimizada para se tornar uma borboleta. O Passarinho sempre foi uma Fênix. Sua força prevalecente existe por causa dela. E somente dela”, escreveu Chastain.
No episódio escrito pelos showrunners da série, David Benioff e D.B. Weiss, Sansa e o Cão se reúnem no banquete após a vitória na Batalha de Winterfell. Sandor relembra o momento em que conheceu Sansa, quando ela não conseguia olhar em seus olhos, e ela retruca dizendo que isso “foi há muito tempo”, e que ela “viu coisas piores desde então.”
Sandor continua a conversa dizendo que “ouviu falar que a dilaceraram, que dilaceraram sem dó”, em uma clara referência ao abuso sexual e psicológico que ela sofreu nas mãos de Ramsay (Iwan Rheon).
A Lady de Winterfell responde que “ele recebeu o que merecia”, e que ela se certificou disso, quando o deixou para ser comido pelos cães no fim da Batalha dos Bastardos.
Clegane, então, afirma: “Você mudou, Passarinho. Nada teria acontecido se tivesse fugido de Porto Real comigo. Nada de Mindinho, nada de Ramsay. Nada disso.” Sansa finaliza com a polêmica resposta: “Sem Mindinho, Ramsay e o resto, eu teria sido um Passarinho a vida toda.”
Chastain não foi a primeira pessoa a apontar o quanto a fala de Sansa é incômoda. Muitos justificaram que a intenção da cena não era enaltecer o estupro, mas sim determinar que Sansa aceita que aquilo que aconteceu com ela faz parte de sua personalidade, não por causa do abuso, mas porque foi como ela aprendeu a ser uma estrategista.
Ainda assim, o que o diálogo deixa claro é que se trata de uma cena que atribui a fortaleza de Sansa (ou seja, sua “transformação” de Passarinho para a personagem que vimos agora) ao sofrimento, reforçando uma ideia problemática que já havia sido apontada na 5ª temporada, de um possível “estupro empoderador.”
A escritora Clarkisha Kent apontou: “Eu preferia ver Sansa falar algo do tipo 'as coisas são como são' em relação aos eventos que a levaram a esta temporada, ao contrário de basicamente sugerir que ter sido abusada a fez ‘mais forte’... vergonhoso. E definitivamente escrito por um homem cisgênero e hétero.”
O que torna a frase particularmente insensível é uma história que data desde o episódio que ficou conhecido como “SansaGate”, quando Sansa foi estuprada por Ramsay após o casamento forçado, quando muitos sentiram que não havia necessidade (ela já não havia sofrido o suficiente?) e apontaram que se trata de uma divergência enorme da história escrita por George R.R. Martin. Posteriormente, quando Sansa começa a ser uma personagem mais resistente na série, a virada a transforma em uma das personagens favoritas.
O que existiu neste arco foi uma transição da personagem. Uma evolução necessária, mas que acontece na série somente após ela sofrer o mais cruel dos abusos. Em contrapartida, a personagem nos livros vai mostrando resistência e fortaleza desde que presenciou a execução do pai (Ned Stark), e isso foi cortado de sua história na produção da HBO — o que é bem observado e explicado neste artigo do portal Gelo & Fogo.
Tratando especificamente da cena do episódio 8x04, há nuances que precisam ser apontadas, como observaram alguns especialistas da história escrita por George R.R. Martin:
“‘Passar por um inferno me transformou na pessoa forte que eu sou hoje’ é algo que muitas pessoas que passaram por eventos traumáticos dizem a elas mesmas”, apontou @PoorQuentyn. “Acho que faz sentido para Sansa dizê-lo. O problema é que não está fraseado como um mecanismo de enfrentamento, mas como uma declaração verdadeira”, esclarecendo posteriormente, por “declaração verdadeira”, estava referindo-se aos roteiristas.
Esta parece ser a sensação geral, como sintetizou a crítica Caroline Framke, da Variety: “[Essa cena] com certeza soou como se fosse a série dizendo que Sansa não seria uma favorita se eles não a tivessem feito passar por um inferno antes de tudo e, quer saber? Nah.”
O que a grande rejeição ao episódio “The Last of the Starks” (observada pela nota baixa no IMDb) sugere é um incômodo geral à forma apressada como os arcos dos personagens principais foi apresentada, esmagando a nuance com que os seus lados bons e ruins haviam sido construídos.
A cena de Sansa e Cão é ausente desta mesma nuance. Mesmo que o objetivo tenha sido mostrar os dois escondendo as dores que sentem sob suas próprias armaduras, deixa em evidência o quanto a série não soube tratar a evolução narrativa de Sansa e de muitas outras mulheres. Em sua observação sobre o episódio, Ava DuVernay apontou: “Então... a única irmã em toda a épica e longa série? É isso que você quer fazer? Okay”, sobre a morte de Missandei — em um tuíte republicado por Nathalie Emmanuel. Isso sem falar sobre a igualmente brusca apresentação da possível loucura de Daenerys.
Game of Thrones é uma série com mulheres fortes, sim, mas que deixam em evidência a cada decisão que a série raramente soube como honrá-las. Fica difícil quando o time de roteiristas e de diretores não conta com mulheres.