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    Se Eu Fechar os Olhos Agora: Crítica da minissérie

    Humanos, demasiado monstros.

    NOTA: 4/5

    O mundo lá fora é grande, grande demais, anunciam o rádio, a recém-chegada televisão dos mais ricos, os automóveis vindos da capital, a alta sociedade e suas viagens para a Europa e, em menor grau, as figurinhas pornográficas que dois meninos, dois meninos como outros quaisquer, contemplam com a certeza de quebrar regras, com o desejo de se aproximar da maioridade. A detenção, a fuga pela janela do colégio de freiras, o passeio no rio, nas lagoas do interior do Rio de Janeiro, fora da pacata cidade de São Miguel e, enfim, o corpo, o corpo de uma mulher, retalhado, cortado, executado, eliminado com raiva da existência, em uma tarde quente do mês de abril de 1961.

    Se a qualidade de um produto audiovisual tem medidas quantificáveis, uma delas poderia dizer respeito à quantidade de cenas memoráveis que a série ou filme em questão reserva aos seus espectadores — e no caso da mais nova minissérie da Rede Globo, Se Eu Fechar os Olhos Agora, baseada no romance homônimo do autor e jornalista Edney Silvestre, são várias as cenas deste tipo. No decorrer de seus 10 capítulos, a imagem da Morte — encarnada pela jovem Anita (Thainá Duarte), uma “pequena de parar o trânsito” brutalmente assassinada, uma mulher cobiçada por todos os homens do local, sejam eles de boa índole ou não —, é a primeira de muitas sequências impactantes da obra adaptada por Ricardo Linhares.

    Maurício Fidalgo/TV Globo/Divulgação

    O autor, aliás, um veterano das telenovelas globais, conjuga elegância e melodrama com fina precisão, apoiado por uma riquíssima concepção visual que alinha aspectos do film noir e da textura desbotada, quase sépia, tão intrínseca às produções de época — para construir, a propósito, não só planos notáveis, como também um rigor estético em seus enquadramentos potencializados pela direção de arte digna de Hollywood, tão distinta e bela quanto as aparências dos mais abastados habitantes de São Miguel. Linhares faz viver, assim, com a sustentação da técnica, o pulsante e premiado livro de Silvestre, transpondo para as telinhas não só a empolgante estrutura de thriller da narrativa, como também seu núcleo emocional.

    Em todo mistério que envolva segredos, mentiras, ilusões, enganos e a busca por um assassino oculto como este Se Eu Fechar os Olhos Agora, quem é objeto de disputa é a verdade em si: o que está em jogo é o controle da história. Neste caso, no entanto — e aqui reside uma das principais qualidades do material —, não é um detetive brilhante nos moldes de Hercule Poirot ou de Sherlock Holmes que se opõe a um vilão igualmente genial, mestre nas artes mais traiçoeiras. Não: no universo de Se Eu Fechar os Olhos Agora, que é o mundo real, os monstros são humanos, demasiado humanos e os "detetives" são dois meninos cujas inocências são manchadas por um crime bárbaro, inesperado e extremamente violento.

    Divulgação/Globo

    O título da minissérie — em uma rima muito criativa, diga-se de passagem —, também faz as vezes de parágrafo inicial de “A Dama Eloquente”, livro de memórias que Paulo Roberto, vivido por Milton Gonçalves em sua idade madura, escreve sobre o caso que alterou sua vida e a de seu amigo, Eduardo, quando eram meninos preocupados apenas com seus cartões estampados por mulheres sensuais. E é a narração grave de Gonçalves que adiciona, enfim, ainda mais dramaticidade às investigações de PR e Edu (João Gabriel D’Aleluia e Xande Valois, que só melhoram e tornam-se mais confortáveis na pele de seus personagens, correspondendo com êxito às intensas demandas psicológicas do material, no decorrer da minissérie).

    Mutante em termos de gêneros narrativos, Se Eu Fechar os Olhos Agora passeia com propriedade por entre as fronteiras que separam os códigos ficcionais, indo do drama político ao suspense policial, e depois do romance de formação, passando pelo mistério, à tragédia. Por mais que queiram deixar tudo para trás, por exemplo, os adolescentes PR e Edu sabem que não podem escapar de seus destinos, e sabem que suas vidas nunca mais serão as mesmas, conforme a espiral de violência e de sangue aumenta a contagem de corpos a partir da descoberta do cadáver de Anita — que, evidentemente, não era quem diziam que ela era —, evento este que coincide com uma celebração política encomendada pelo prefeito.

    TV Globo/Divulgação

    Interpretado por um sempre competente Murilo Benício, o político Adriano Marques Torres, membro de uma dinastia política que provavelmente remete aos tempos do Império, passando, é claro, pelos anos da ditadura de Getúlio Vargas, surge como um dos primeiros suspeitos da execução de Anita aos olhos do público. Contudo, e se a mulher tiver sido assassinada por seu velho e esquisito marido, violentamente interpelado por Adriano sobre a morta, o igualmente duvidoso Francisco (Renato Borghi), que confessa ser autor do crime que não cometeu? E não se pode, é claro, descartar uma possível participação do inescrupuloso e insidioso magnata Geraldo Bastos (Gabriel Braga Nunes). Certo. Mas certo mesmo?

    Sim e não, porque ainda que o mistério seja o motor propulsor da narrativa, as perguntas suscitadas pela sensacional montagem não-linear — que “respinga” aqui e ali rápidas inserções de flashbacks e flash forwards, contrastando o presente dos personagens com o passado e o futuro, entregando um quebra-cabeça ainda mais rico ao espectador — não são a pedra fundamental de Se Eu Fechar os Olhos Agora. Para empregar um conceito hitchockiano, o suspense erguido ao redor do homicídio é quase um MacGuffin, um artifício narrativo que impulsiona a trama à frente, permitindo que o roteiro — e também a sólida direção geral de Carlos Manga Jr., neste caso — concentre-se em seus objetivos mais caros.

    TV Globo / Divulgação

    Energizado pelo aspecto thriller de sua natureza,  o material adquire seus contornos verdadeiramente relevantes quando, no fim das contas, Se Eu Fechar os Olhos Agora revela ser, antes de mais nada, uma crítica dos costumes e, sobretudo, uma denúncia da podridão que borbulha por baixo da superfície dos “homens de bem” e das “mulheres belas, recatadas e do lar”, categorias nas quais Adriano e Isabel Marques Torres — uma fantástica Débora Falabella, que recebe aquela que possivelmente é a sua personagem mais tridimensional, uma mulher às vésperas de sua tomada de consciência como mulher, mas ainda presa às limitações impostas pela sociedade e pelo machismo — encaixam-se à perfeição.

    Mais do que descobrirmos as respostas para o “quem?” e o “como?” ao redor do assassinato — cruciais para a fruição do ótimo entretenimento que Se Eu Fechar os Olhos Agora também proporciona, apesar da ocasional pressa no desenrolar da trama —, a minissérie nos coloca questões mais profundas, de fundo existencial, social, cultural e político, especialmente ressonante nos dias de hoje, que tão infelizmente ecoam os anos 30 e os 60: por que e por quais interesses sórdidos a vida de uma jovem mulher, de uma jovem mulher negra, vale ressaltar, foi tirada com tanto ódio? Racismo, ganância, homofobia, perversão, luxúria, sexismo e autoritarismo são apenas alguns dos (pre)conceitos que satisfazem a equação.

    TV Globo / Divulgação

    Também por isso os jovens personagens principais, acompanhados pela filha mais nova do prefeito, Vera Lúcia (Jullia Svacinna), são parte de um jogada de mestre da narrativa: sem as crianças, por mais novelesco e melodramático que isso possa soar, sobraria apenas a sordidez dos adultos de São Miguel, de um modo geral, e uma espécie de niilismo esvaziante, angustiante e paralisante como sentimento. São os adolescentes da série, enfim, que fundamentam um muito bem-vindo maniqueísmo, inserido no panorama para gerar um contraste e um contraponto à maldade em si: sim, o mundo é um inferno, argumenta Se Eu Fechar os Olhos Agora, mas há, em algum lugar, uma chance, uma saída, uma espécie de esperança.

    Lançando um olhar incisivo às relações ardilosas estabelecidas entre a política e a religião, cristalizadas na figura do Bispo Tadeu (Jonas Bloch), a minissérie ainda encontra espaço, por fim, para fazer uma defesa apaixonada das segundas chances e dos afetos necessários e que não podem e não devem ser impossíveis, temáticas respectivamente interpretadas por Antonio Fagundes e Mariana Ximenes, cujas performances geniais, complexas, emocionantes e muito versáteis são responsáveis por alguns dos pontos mais altos da obra. Uma obra que sabe como poucas, em suma, combinar personagens cativantes; suspense policial; contundentes e urgentes críticas sócio-políticas; e entretenimento de altíssimo nível.

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