Bandersnatch não é um mero episódio especial de Black Mirror: é um "evento", nas palavras da Netflix, que lançou o novo filme em sua plataforma de streaming na última sexta-feira de 2018.
De fato, é uma experiência bem diferente do que os adeptos do mantra "Netflix and chill" estão acostumados. Para começar, Black Mirror: Bandersnatch não pode ser assistido em qualquer aparelho. Quem acessa o serviço de streaming utilizando os acessórios AppleTV, Amazon FireStick e ChromeCast ou com TVs smart antigas não terá acesso ao conteúdo. O "futuro" ainda não está disponível para todos.
Essas restrições existem porque Bandersnatch faz uso de recursos tecnológicos avançados para dar a quem assiste o poder da decisão -- ou algo parecido com isso. Por meio da tela touch (do tablet ou do celular), do controle remoto (da TV), de cliques de mouse (no computador) ou do joystick vibratório (para quem acessa a Netflix com Xbox ou PlayStation), o espectador-agora-jogador deve fazer escolhas durante uma história que se desenrola e ramifica em tempo real. Isso significa que há diversos modos de se contar a trama, além de múltiplos desfechos possíveis -- e nenhum deles é muito feliz, no típico estilo Black Mirror.
Já nos primeiros minutos assistindo (jogando?) Bandersnatch, é inevitável evocar o bordão "isso é muito Black Mirror!", porque na teoria e na prática, é bem isso mesmo. Temos aqui exemplos perfeitos de como a tecnologia continua a transformar nossos antigos hábitos e de como estamos preparados para nos adaptar facilmente às mudanças. Você pode até torcer o nariz para a obrigação de apertar botões enquanto assiste a um filme, mas é inegável que esta iniciativa cumpre a inovação a que se propõe. Ainda mais se pensarmos nas tantas pessoas que assistem a horas seguidas de Netflix, sedentárias e afundadas no sofá. Porque se Bandersnatch é uma experiência de TV inédita, é justamente por ser mais ativa do que a que estamos acostumados.
Só que a ideia de o público interferir nos rumos da narrativa não é assim tão nova nem revolucionária: livros, quadrinhos e videogames exploram essa premissa há décadas e com bastante eficiência. E ainda que os jogos eletrônicos sejam a principal inspiração do enredo de Bandersnatch, é a "gamificação", tão evidente nos episódios da última temporada, que aqui se faz presente no próprio ato de consumir o produto. Estaríamos assistindo a um game, jogando um filme ou as duas coisas ao mesmo tempo? E é dessa forma ambígua, enigmática, ousada -- e com a distopia de Black Mirror como cobaia -- que a Netflix estaria antecipando os próximos caminhos do entretenimento interativo e, de quebra, tentando levar o crédito por essa "visão".
Nunca é demais lembrar que para quem joga videogame, Bandersnatch não parece lá uma grande novidade. Estúdios de games como Quantic Dream e Telltale estabeleceram suas reputações criando experiências interativas de escolha que seriam melhor descritas como "novelas digitais" do que como jogos propriamente ditos. A diferença aqui é que Bandersnatch foi filmado à moda do cinema tradicional, com locações, atores e atrizes reais. Para contribuir com a ilusão de realidades paralelas e abastecer as muitas ramificações possíveis do roteiro, algumas cenas foram gravadas diversas vezes com ligeiras mudanças nos diálogos. Consequentemente, também foram produzidos vários finais que representam as dezenas de tomadas de decisões que o espectador faz. É possível "terminar" a história e chegar aos créditos em cerca de 50 minutos, dependendo dos caminhos percorridos. Mas quem quiser experimentar com as possibilidades e assistir a todas cenas disponíveis vai gastar mais de duas horas diante da tela, entre idas, vindas e recomeços.
Assim como em um bom videogame, a persistência de ver e rever Bandersnatch compensa, porque cada desdobramento pode ser drasticamente diferente do outro, como se fossem partes de vários filmes distintos. Há possibilidades com conclusões mais cruas e violentas, outras mais dramáticas e sombrias. Há também um desfecho mais "definitivo", que chega a abusar da metalinguagem e da autorreferência. E é nesse momento em que a Netflix deixa claro que está levando muito a sério essa história de prever como vamos nos divertir no futuro.
Sem entrar muito em spoilers, são no mínimo divertidas as maneiras como a gigante do entretenimento se coloca como uma personagem de Bandersnatch. Trata-se de uma ambiciosa piada interna que quase quebra a quarta parede e fica a poucos centímetros de soar presunçosa, mas acaba passando uma impressão simpática. Hoje muito mais do que apenas uma plataforma de streaming, a Netflix tem consciência de que se tornou um dos elementos centrais da cultura pop atual, então faz questão de usar essa moral a seu favor. Ao investir em Bandersnatch, a empresa transmite a mensagem de que quer abrir portas e desbravar novos territórios, mas com um objetivo ainda maior em vista: marcar seu nome na história e perdurar.
Voltando ao título deste texto: será que o próximo conceito de entretenimento visual passa por algo parecido com Bandersnatch? Não há dúvidas de que é um marco que será lembrado. Mas o que vemos agora é embrionário em relação a onde a indústria poderá chegar. Apesar de ainda pouco popular, a interatividade no ato de assistir filmes e séries parece um caminho sem volta. Os games de aventura narrativa já estão avançados na multiplicidade de possibilidades, mas ainda não chegaram lá no realismo dos gráficos e não nos deixam esquecer que aquilo é um game (o recente Detroit Become Human é um bom exemplo disso). Produzir algo como Bandersnatch dá trabalho, custa caro e leva mais tempo que um episódio comum (foram 18 meses de produção, de acordo com o criador Charlie Brooker), mas se o público abraçar a ideia, certamente os estúdios vão investir.
É claro, pode ser que não dê em nada, assim como outras tecnologias "revolucionárias" já ficaram pelo caminho (alô, alô, realidade virtual). Mas também pode ser que dê muito certo e que uma nova febre se espalhe pelo mundo, aumentando a demanda imediata por produtos semelhantes -- a própria Netflix já está cuidando disso. Talvez até mesmo Black Mirror continue a se aventurar a cada final de ano por este formato maluco, que apesar de não ser revolucionário, oferece lampejos interessantes de um futuro bem possível -- e cada vez mais "Black Mirror".
Pablo Miyazawa é colunista do AdoroCinema e consome cultura pop desde que nasceu, há 40 anos, de Star Wars a Atari, de Turma da Mônica a Twin Peaks, de Batman a Pato Donald. Como jornalista, editou produtos de entretenimento como Rolling Stone, IGN Brasil, Herói, EGM e Nintendo World