Ryan Murphy é o nome por trás do projeto, mas o crédito é de Steven Canals. Pose, a celebrada nova série do hall de produções do criador de American Horror Story, American Crime Story, Glee e Feud se passa durante o fim da década de 1980 e se ampara na cultura em ascensão dos bailes para trazer o universo LGBT para a frente das câmeras.
A série, que estreia no Brasil no dia 28 de setembro através da Fox Premium — com todos os episódios disponibilizados no mesmo dia no Fox App —, conta uma história que mistura o a ascensão da cultura de luxo e o aumento do consumo e de privilégios, colocando em conflito dois segmentos culturais completamente antagônicos. No estrelado elenco, ainda que apenas com uma temporada, alguns grandes nomes se destacam, como Billy Porter, Indya Moore, Angelica Ross e Mj Rodriguez.
O AdoroCinema conversou com Steven Canals a respeito da primeira temporada. Confira abaixo.
A série é inspirada na sua própria vida, como é ver isso refletido na tela? Como você se sente tendo essa série no ar?
Bem, deixe-me ser claro, eu não sou um membro da comunidade dos bailes. Eu nunca desfilei em um baile, mas eu nasci e cresci em Nova York, nos anos 80, e ver um programa centrado em pessoas não brancas que são trans e queer é impressionante. Eu passei vários anos apresentando a ideia para diferentes emissoras e executivos, e muitas pessoas achavam que era bem escrito mas não viam o valor de se produzir a série. E agora tê-la produzida pelo FX com o Ryan Murphy e todos meus colaboradores, é um momento tão bonito e eu estou muito orgulho com o resultado. Eu só sou muito grato por poder dar voz à uma comunidade que normalmente não recebe muita atenção.
Você poderia nos contar como você conheceu a cultura dos bailes e por que você decidiu centrar sua história ao redor dela?
Claro, eu tive a sorte de descobrir a cultura dos bailes através de um professor na faculdade, que tinha entendido que eu estava lutando com a minha identidade como uma pessoa queer que não tinha se assumido. E ele sabia que cresci em Nova York, e me falou: “Olha, existe essa linda comunidade que conseguiu superar os dias difíceis que eram Nova York nos anos 80”. Mesmo com toda a pobreza, a doença e a violência, essa comunidade se manteve forte e amorosa, um exemplo verdadeiro do que é uma família.
E sendo introduzido a cultura do baile, vendo o documentário da Jennie Livingston “Paris is Burning”, eu me apaixonei pela comunidade. E mais especificamente, o que eles fizeram por mim foi me inspirar a ser meu eu autêntico e falar minha verdade, e Pose nasceu da minha vontade de fazer uma homenagem a comunidade e dizer: “Obrigado por me inspirar.”
Eu acredito que a série representa a voz das minorias na televisão, o que isso significa para você?
Bem, eu acho que representação é muito importante, e isso realmente pode parecer simples mas eu acho que é muito importante. Quando eu era um jovem negro crescendo no Bronx, eu nunca me vi refletido nos filmes e na televisão. Eu acho que se tivesse “me visto” crescendo isso teria normalizado a experiência pelo qual eu estava passando e eu não teria passado anos lutando contra a minha homofobia internalizada. Então nós precisamos reconhecer que o cinema e a televisão, todo o campo de entretenimento, eles realmente têm a habilidade de afetar como nós se vemos.
O cinema e a televisão podem afirmar identidades, e existem muitos estudos que mostram que isso aumenta a autoestima. E eu penso que estamos passando por um momento, especialmente nos Estados Unidos, onde a administração atual vem atacando pessoas não brancas e queer, é muito importante que as pessoas dessas comunidades saibam que são importantes, que eles são valorizados e merecem ter suas vozes ouvidas e receberem amor.
Como foi para você com Ryan Murphy e com Brad Falchuk, e o que você acha que mudou na série desde o envolvimento deles?
Bem, trabalhar com o Ryan e com o Brad foi um sonho tornando realidade. Eu sou um grande fã do Ryan Murphy desde a primeira série dele, Popular, de 1999 e eu tenho acompanhado a carreira dele desde então. E juntos o Brad e o Ryan criaram Glee, que também é uma das minhas séries favoritas, e eu amo American Horror Story e American Crime Story, eu sou um grande fã do trabalho deles.
E como um contador de história, ter a oportunidade de estar na sala de roteiristas com eles, criando uma história, é incrível. É realmente uma aula, e muitas das vezes que eu estava sentado lá eu tinha que me beliscar porque eu não conseguia acreditar que eu estava sentado na mesma sala que eles, discutindo sobre a história e falando sobre personagens que eram tão importantes para mim. Então foi impressionante.
E em termos de como o projeto mudou quando eles vieram, eu acho que a melhor coisa que aconteceu trabalhando com o Ryan e com o Brad foi a narrativa — ela ficou mais acessível e universal. A primeira versão de Pose que eu escrevi foi na UCLA, quando eu era um universitário estudando roteiro, e na época, eu escrevi aquilo só para mim. Eu não escrevi pensando na audiência, ou em qualquer outra pessoa, então a primeira versão era honesta e verdadeira, mas muito pesada. E eu acho que uma lição muito importante que o Ryan me passou, desde o começo, foi que se você quer que uma comunidade em particular seja vista de maneira positiva então você tem que imbuir seu trabalho de positividade, e é isso o que fizemos com Pose.
Eu acho que o programa tem atitude e não foge da realidade do que estava acontecendo nos anos 80. Nós falamos da epidemia de AIDS, e nos últimos episódios nós falamos da crise do crack, então nós não perfumamos, mas eu acho que a série ainda deixa a audiência se sentindo esperançosa. Essa foi a maior mudança, e uma que me deixa muito satisfeito.
Eu queria saber como é a sala dos roteiristas, porque quando você tem um programa tão diversificado como esse na tela você precisa de um grupo diversos de pessoas o escrevendo.
A nossa sala é bem pequena, são só cinco roteiristas. Temos o Ryan Murphy, um homem cis, branco e homossexual. Também temos o Brad Falchuk, um homem cis, branco e hétero. Tem eu, homem cis, afro-latino e queer. E temos duas mulheres trans, Janet Mock, uma mulher negra trans, que é uma autora best seller do New York Times, e Our Lady J, uma mulher branca trans, que é a primeira pessoa trans a escrever e produzir. E eu acho que entre os cinco de nós existem experiências muito diversas.
Our Lady J cresceu no interior da Pensilvânia, eu cresci em Nova York, Janet Mock nasceu no Havaí, então todos nós entramos na sala com experiências diferentes, e eu acho que isso é algo que se pode perceber na série. Eu acho que se as pessoas estão curiosas sobre como são as discussões na sala de roteiristas, elas são refletidas em cada episódio.
Como a história do Stan e da Angel começou? É algo muito poderoso e que não vemos tanto.
Bem, uma das primeiras coisas discutidas na sala dos roteiristas foi sobre o que é a série. E sobre o que é está bem no título do programa, Pose, e não focamos só nas poses que essas pessoas fazem nos bailes, estamos pensando nas poses metafóricas que fazemos no nosso cotidiano. Quais são as máscaras que vestimos? Quem são as pessoas que fingimos ser?
Eu acho que uma das coisas que nós queríamos contar é a narrativa onde, tipicamente vista no cinema e na TV, nós conhecemos um personagem trans bem no começo da história e eles são assassinados e viram um catalista para a história do personagem cis, ou é esperado que eles estejam lá para educar a audiência. E eu acho que com a história do Stan e da Angel o que nós procuramos fazer foi ser subversivos e contar uma história onde nós vemos uma relação apaixonada entre um uma pessoa cis e uma pessoa trans, mas que também fosse uma história onde o personagem trans tivesse poder e uma voz na relação.
E normalmente, uma das críticas que é feita à comunidade trans é que eles não sabem quem são, que eles estão confusos e fingindo, e obviamente isso não é verdade. Eu acho que a maioria das pessoas trans sabem exatamente quem são e estão vivendo suas verdade, então nós queríamos pegar essa história que é tão comum nos filmes e nas séries e subvertê-la. E em vez de ter essa narrativa com uma pessoa trans que está confusa — o que é um mito e algo que nós precisamos aposentar, agora nós contamos histórias através de um outro olhar — nós agora temos um homem cis que está confuso com a sua identidade, e como é lindo que essa mulher trans apareceu e é ela quem está ajudando ele a viver autenticamente.
Quais são os maiores desafios que vocês enfrentaram desenvolvendo a história, e vocês já têm planos para temporadas futuras?
Sabe, não tivemos muitos desafios em termos de história. Eu acho que nós tivemos sorte de ter muito apoio da FX, do John Landgraf e de todo o time. Eles estavam do nosso lado, assumiram os riscos e tomaram as chances que queríamos tomar com essa narrativa.
Eu acho que a maioria das pessoas trabalhando em Pose sabiam que, especialmente em uma emissora desse calibre, uma série como essa nunca tinha sido feita, eram histórias que não haviam sido contadas. Então eu acho que eles perceberam o quão especial ela era e nos deixaram tomar grandes riscos.
Sobre uma segunda temporada, sim, nós temos ideias para uma próxima temporada. Nós não sabemos ainda se vamos ter mas eu espero que sim, estou bem esperançoso. E sim, existem mais histórias para se contar, eu não quero dar spoilers, mas sim, temos ideias.
Sobre o processo da escolha de elenco, houve alguma surpresa, ou talvez algum momento favorito na descoberta de um ator? E o quanto o elenco contribuiu com os personagens?
Quanto à escolha de elenco, isso demorou por volta de seis meses. Ryan, Brad, eu e os produtores trabalhamos muito com a Alexa Fogel, nossa diretora de elenco, e ela é maravilhosa, já fez ótimas séries.
Ela nos apresentou todos esses atores incrivelmente talentosos e nós vimos as fitas de audição e decidimos com quais queríamos se encontrar, depois fomos para Nova York e encontramos com esses atores em pessoa, e poder ouvir as histórias deles e conhecer suas experiências foi maravilhoso. E curiosamente, esses atores eram tão bons que nós acabamos criando mais personagens só para poder contratá-los, o que obviamente nos custou um pouco.
E de momentos especiais na escolha, meu momento favorito foi quando conhecemos a Indya Moore, que faz a Angel. Ela é do Bronx como eu, e eu sou 15, 16 anos mais velho que ela, mas nós fomos falando sobre o bairro e descobrimos que fomos para a mesma escola. E foi muito bom que nós tivéssemos essa experiência, e sempre que estávamos juntos no set eu dava um abraço nela e dizia, “Do Bronx até aqui”, porque é incrível que tenhamos vindo da mesma comunidade e agora estamos aqui, fazendo tv.
Sobre os personagens, eu acho que a maioria deles já estavam bem desenvolvidos nas páginas. Eu acho que existem dois lugares que os atores podem desenvolvê-los mais. O primeiro é, obviamente, como roteirista você tenta criar um personagem que seja tridimensional e botá-lo em situações que pareçam reais. Então, por exemplo, uma personagem como Blanca, feita pela Mj Rodriguez, ela claramente é muito apoiadora e uma figura materna, mas aí você tem alguém como a Mj, que chega e adiciona aquela energia extra, e essa energia é quem ela é na vida real. Então eu acho que essa é uma maneira que um ator informa o personagem.
Em outros espaços do set, especialmente nos dois primeiros episódios da temporada, Ryan, Brad, Janet, Our Lady J e eu tivemos muitas conversas com todos os atores e atrizes. E com essas conversas sobres as experiências de vida deles nós voltávamos para a sala de roteiristas e falávamos sobre essas conversas, e isso ajudou a construção da história. Então isso não necessariamente alterou os personagens deles, mas impactou no tipo das histórias que queríamos contar.
Então, por exemplo, no quarto episódio da temporada nós focamos muito no corpo porque eram conversas que tivemos no set sobre mulheres trans e como os corpos delas são vistos de maneiras muito específicas e como seus corpos e identidades são discutidos de maneiras muito problemáticas. E então pensamos, “Bem, vamos desconstruir isso com nossa série”.
Você poderia falar um pouco sobre outros filmes, livros e até mesmo séries que você estudou para a série?
Eu acho que todos os filmes e série que eu vi durante meus 38 anos de vida me ajudaram a compor o programa. Eu acho que no fim do dia, Pose é uma história sobre a família que você escolhe, e eu sempre amei um bom drama familiar. Então eu acho que todas as histórias sobre família que eu já vi ajudaram a me inspirar em Pose.
Em termos de histórias específicas sobre os bailes, eu acho que fora do documentário Paris is Burning não foram feitas muitas séries ou filmes sobre a comunidade. Mas como eu disse, nós temos nossos consultores, e além dos quatro mencionados, nós também temos outros dois consultores, Michael Roberson e Twiggy Pucci Garçon, que sabem muito sobre a época. E também existem muitos livros, artigos em jornais e até vídeos no YouTube sobre a comunidade dos bailes, e isso me ajudou muito como inspiração e pesquisa para construir a história.
Sobre filmes, eu amava Flashdance crescendo, e isso influenciou Pose, dá para ver isso no final do piloto, quando o Damon está dançando. A Cor Púrpura, do Spielberg, é um outro filme que eu cresci adorando e que eu acho que influenciou muitas das histórias que eu gosto de contar. Então eu acho que existem múltiplas influências que impactaram a minha escrita na série.