Crítica publicada em 28/07/2018 e atualizada em 01/09/2020
NOTA: 3,0 / 5,0
"Eu sou o homem que lutará pela sua honra / Eu serei o herói com quem você tem sonhado", canta Peter Cetera no refrão de "Glory Of Love", canção-tema de Karatê Kid II - A Hora da Verdade Continua (1986). Por mais que a faixa tenha sido indicada ao Oscar e desfrute até hoje de uma boa rotatividade em rádios de programação adult contemporary, essa música não deixa de exalar um certo anacronismo em sua mensagem. A figura de um homem bravo pronto para salvar uma donzela indefesa nunca esteve tão fora de moda, felizmente, e a cultura pop tem refletido discussões que cada vez mais intensas na sociedade sobre a necessidade de se quebrar estereótipos. (Vide o sucesso de produções como Mulher Maravilha ou Frozen, uma animação na qual o “felizes para sempre” da princesa não depende de nenhum príncipe encantado.)
Cobra Kai na Netflix: Tudo que você precisa saber sobre a sérieAssim como a canção de Cetera, os filmes da cinessérie Karatê Kid, quando analisados no contexto de hoje, soam datados em certos aspectos. Contudo, para fãs que cresceram assistindo Daniel LaRusso aplicar o já icônico golpe da garça no desfecho de Karatê Kid - A Hora da Verdade (1984), um dos clássicos das sessões vespertinas na TV brasileira, é fácil deixar de lado maiores racionalizações quando imagens assim ativam a memória afetiva. Em agosto de 2017, o YouTube anunciou a produção de uma série sobre a vida adulta, três décadas depois, dos protagonistas adolescentes do primeiro filme da franquia de artes marciais. Parecia uma ideia arriscada. Entretanto, o que se vê em Cobra Kai é uma tentativa sincera de ser fiel ao espírito da saga, que canaliza a nostalgia de uma maneira prática, mas honesta. A série se assume como homenagem em diversos momentos, mas por vezes não fica claro o suficiente se a atração criada por Jon Hurwitz, Hayden Schlossberg e Josh Heald está abraçando seu lado kitsch ou deslizando no roteiro e direção.
O embate final de Karate Kid - A Hora da Verdade (1984) é o flashback que dá início à série. Só que ao invés de focar na glória de Daniel LaRusso (Ralph Macchio), acompanhamos a perspectiva de seu nêmesis, o derrotado Johnny Lawrence (William Zabka), valentão que fez da vida do pupilo do Sr. Miyagi (Pat Morita) um inferno nos tempos de high school.
Cobra Kai trará a origem do Sr. Miyagi na 3ª temporada na NetflixTrabalhando em bicos como faz-tudo, o Johnny dos dias atuais mal consegue dinheiro para comprar seus engradados de cerveja para manter seu alcoolismo. Também não aparenta ter força de vontade sequer para dar jeito no apartamento bagunçado em que vive. Tudo em sua rotina soa deprimente. Agarrado ao passado, com se tivesse aceitado que sua vida estagnou para sempre, mantém o mesmo carro, mesma postura decadente de macho-alfa e os mesmos preconceitos de antes. Além disso, mantém uma péssima relação com Robby (Tanner Buchanan, de Designated Survivor), seu filho envolvido com pequenos delitos.
Mesmo que 34 anos tenham passado desde a derrota no torneio de karatê, Johnny é constantemente lembrado de seu fracasso. O rosto de LaRusso está na TV e em outdoors. Daniel se tornou um empresário do ramo de automóveis que ascendeu socialmente e hoje desfruta do conforto que não teve quando jovem. Casado (Courtney Henggeler interpreta a esposa Amanda), ele é o atencioso pai de Samantha (Mary Mouser) e Anthony (Griffin Santopietro) que mantém o mesmo carisma abobalhado dos tempos de atleta.
Acenando para uma tendência recente de Hollywood de fazer o público empatizar com os vilões, Cobra Kai oferece uma revisão do papel de Johnny na franquia. Aliás, o maniqueísmo de outrora é deixado de lado para dar espaço a uma dinâmica que imagina Lawrence e LaRusso como um yin-yang. Nenhum dos dois é completamente bom ou mau. Ao longo dos dez episódios de cerca de meia hora de duração, o espectador não é manipulado para torcer por um ou outro quando os caminhos de Johnny e Daniel se cruzam mais uma vez e a rivalidade dos dois se reacende.
Neste revival, a figura que mais merece atenção crítica é Johnny, já que o personagem tem uma torta caminhada por redenção. No primeiro Karate Kid ele foi o babaca arquetípico das comédias adolescentes, o terror dos nerds e esquisitões. Em Cobra Kai, Johnny consegue dinheiro para abrir seu próprio dojo e, ironicamente, ensina artes marciais para adolescentes que sofrem bullying e querem se defender de valentões. O que é interessante nisso é que Johnny ainda é um sujeito grosseiro, que, sob a justificativa de ser politicamente incorreto, ainda abusa de tiradas e atitudes sexistas, homofóbicas e até xenófobas. "Se você não for agressivo, está sendo uma mulherzinha. Você não quer ser uma mulherzinha. Você quer ter colhões", diz ele para Miguel (Xolo Maridueña), aluno com quem mantém uma relação mais próxima e um dos principais personagens jovens da série.
Não há problema, é claro, em retratar um personagem como Johnny com certa empatia. Ele é humano, óbvio. Tem defeitos e qualidades. O problema é que o roteiro de Cobra Kai parece se alinhar demais com as ideias de Johnny. Sua única aluna mulher aprende com o sensei bad boy a usar “pussy” como ofensa. Alunos que recebiam apelidos ofensas de Johnny por seus atributos físicos começam a aceitar os xingamentos. Um de seus conselhos para um rapaz que quer chamar uma menina para sair envolve não aceitar não como resposta. William Zabka está para os instrutores de artes marciais o que Billy Bob Thornton está para os intérpretes do Papai Noel em Bad Santa. Um momento em que fica explícito que a série optou por conservar certos papéis de gênero (ao menos nesta primeira temporada) envolve Samantha, filha de LaRusso. Com conhecimentos de karatê confronta seu ex-namorado Kyler (Joe Seo), que espalhou rumores maldosos sobre ela na escola. A garota já havia cerrado os punhos para tirar satisfações com ele, mas Miguel teve de lutar pela honra da donzela. Só faltou tocar “Glory Of Love”.
Cobra Kai bebe tanto na fonte do primeiro Karate Kid que em alguns momentos cruza a linha entre homenagear o filme original, o que faz com bastante reverência, e emular a dinâmica do longa-metragem de 1984. Há muito espaço para referências (há um singelo easter egg até para o reboot com Jaden Smith e Jackie Chan), menções a nomes de personagens antigos, cenários importantes da franquia, músicas que conectam passado e presente e até mesmo o golpe da garça aparece novamente em determinado momento. Flashbacks são constantes na montagem. A recepção da série entre os fãs dedicados da franquia foi muito boa (o que garantiu uma segunda temporada), mas é difícil imaginar que a atração do YouTube Premium vá cativar quem chega até ela sem a mesma bagagem. É diferente, por exemplo do que acontece com um filme como Creed, que deriva da franquia Rocky, evoca a propriedade artística na qual se baseia, mas funciona de forma independente.
Outra coisa que se repete em Cobra Kai é a importância da relação sensei-aprendiz. A série tem alguns méritos que os filmes não tem, como o aprofundamento do escopo de personalidade de seus protagonistas, mas os longas originais tinham algo insubstituível: Pat Morita, morto em 2005. O carisma do Sr. Miyagi e, principalmente, a capacidade dele de pensar o esporte como uma filosofia fazem falta. Ao menos o roteiro não tentou forçar um Miyagi genérico em algum personagem novo. Outros personagens, entretanto, seguem parcialmente arquétipos conhecidos da saga. Miguel, treinado por Johnny, começa com a inocência de LaRusso e Bobby, que é mentorado por Daniel, tem um pouco da tempestividade do pai. Por isso é interessante que cada um deles seja treinado pelo personagem que representa o oposto de suas características.
Em termos de atuação, impressiona o quanto Ralph Macchio e William Zabka, independente da ação do tempo, conseguem exprimir tão bem a mesma essência que mostraram em cena em Karate Kid - A Hora da Verdade. Macchio tem os mesmos trejeitos, a mesma maneira de falar sorrindo que mostrou no primeiro filme. E seu jeito de bom moço potencializa o contraste das atitudes menos louváveis que Daniel LaRusso emprega na primeira temporada de Cobra Kai. Zabka também tem uma presença firme em cena. Johnny pode ter perdido o campeonato de karatê em 1984, mas o personagem claramente tem mais aptidão para as cenas de ação. Macchio e Zabka voltaram tão bem à pele de seus personagens porque a série mostra como ambos podem ser imaturos e agir como adolescentes de 50 anos de idade. Sobre as sequências de luta: nenhuma é muito impressionante em termos de coreografia, mas a cena na qual Miguel briga com Kyler no refeitório da escola e as lutas do campeonato de 2018 divertem.
Por um lado, é um mérito que a premissa de Cobra Kai tenha se sustentado minimamente interessante por toda a primeira temporada. Claramente esta não é uma série caça-níquel sem preocupações em respeitar o material original. Quem chega à atração sedento por uma viagem nostálgica ficará satisfeito. Por outro lado, as cinco horas de duração da primeira temporada contam com muitas viradas de roteiro que parecem inseridas mais para cumprir tabela do que qualquer coisa. Por vezes, especialmente no núcleo jovem da série, é como se estivéssemos assistindo a um episódio ruim de Malhação. Alguns diálogos também não ajudam. “You wanna know how to kick ass? First you got to learn how to kick”, transcrita aqui em seu idioma original, é uma das linhas mais risíveis.
Há certo nível de autoconsciência na série. Algumas tomadas são exageradamente dramáticas e algumas frases de efeito são tão intencionalmente canastronas. A intenção é não levar tudo ali a sério e se divertir com um entretenimento que leva esses personagens a caminhos éticos inesperados. Lawrence aprende uma coisa ou outra sobre jogar limpo e LaRusso consegue recobrar os ensinamentos de Miyagi para além dos slogans de sua concessionária.
Cobra Kai: Crítica da 2ª temporada