Desde a primeira temporada, Unbreakable Kimmy Schmidt usou o absurdo e a inocência de sua protagonista em relação às convenções sociais que normalizam o machismo para expor as contradições da sociedade. Forte na ironia, a comédia perdeu fôlego na segunda temporada e recuperou um pouco de sua acidez na terceira, mas na quarta (ou na primeira parte dela) está mais atual do que nunca.
O tema da vez, é claro, é o movimento #MeToo e as diversas denúncias de abuso sexual que tomaram Hollywood nos últimos meses, desde que o caso Harvey Weinstein veio à tona. Sem tratar dos figurões da indústria audiovisual diretamente, a série faz inferências afiadíssimas, utilizando para isso a reversão das personas. O primeiro episódio incomoda justamente neste ponto, pois ao colocar Kimmy (Ellie Kemper) na figura do “possível abusador”, transmite uma ideia de não-culpabilização, como se estivesse protegendo o agressor. Ainda que cause incômodo, talvez não tenha sido a abordagem ideal, que aparece realmente no terceiro episódio.
Provavelmente um dos melhores episódios da série, “Party Monster: Scratching the Surface” é um documentário original da “HouseFlix”, em que o DJ Dedada (Derek Kena) vai atrás da história do Reverendo Wayne (Jon Hamm) e acaba juntando forças para tirá-lo da cadeia. Aqui, Unbreakable está em sua melhor forma: é uma ironia velada mas ao mesmo tempo escancarada, que tira sarro do formato dos próprios documentários da Netflix e do quão unilaterais podem ser; mas para além disso, exibe o ridículo ao apresentar Fran Dodd (Bobby Moynihan), um adepto das teorias das conspirações que acredita que as mulheres estão roubando o lugar dos homens na sociedade. Aqui há espaço para alfinetar Weinstein, Bill Cosby, citar Oito Mulheres e Um Segredo, As Caça-Fantasmas e a escolha da Revista TIME para “Personalidade do Ano” de 2017. É provavelmente o episódio mais metalinguístico de uma série que por si só já é abarrotada de referências a eventos reais, uma paródia do início ao fim que tem espaço para críticas de todos os tipos: sobra para a mídia, para as subcelebridades, para Trump, e definitivamente vale ser visto mais de uma vez para que todas as referências sejam captadas.
Mais do que nunca, Unbreakable Kimmy Schmidt chega na primeira metade de sua temporada final exuberante. Jacqueline White, da fenomenal Jane Krakowski, ganha mais espaço e sua “parceria” com Lilian (Carol Kane) funciona surpreendentemente bem; retirá-la de seu lugar de conforto sempre foi hilário, mas a forma como duas personagens diametralmente opostas acabam encontrando um ponto em comum traz uma mensagem um pouco mais abrangente de união e parceria entre mulheres; deixar que Titus (Tituss Burgess) evolua e comece a encontrar o seu lugar do mundo também dá enfim uma sensação de finalidade ao icônico personagem. Além disso, os episódios também constroem o caminho para uma certa evolução também de Kimmy. Durante todo o tempo, sua ingenuidade foi a base das piadas, com a sua alegria pela vida normalmente fazendo o caminho inverso do que ela esperava e assustando as pessoas. Ainda não se sabe para onde a história vai caminhar nos episódios finais, mas a série parece estar bastante confortável com o que trilhou até aqui.
Unbreakable Kimmy Schmidt é uma história de abuso sexual que não trata diretamente de abuso sexual; é sobre traumas femininos mas com o ponto de vista único de tratá-los com leveza. Particularmente nesta primeira parte da quarta temporada, acabou se “beneficiando” por ter um gancho tão fresco nos últimos acontecimentos de Hollywood, e apesar de estar longe de ser perfeita (piadas passam do ponto uma vez ou outra), está no caminho certo.
A quarta (e última) temporada de Unbreakable Kimmy Schmidt foi dividida em duas partes; este texto contempla a primeira, de seis episódios, já disponível na Netflix. A segunda estreia no dia 25 de janeiro de 2019.