O primeiro episódio da histórica 29ª temporada de Os Simpsons prova duas coisas. Primeiramente, o quanto a realidade brasileira em 2018 é reflexo do contexto nos Estados Unidos e no resto do mundo. Em segundo, que a série mais longeva da televisão segue viva como nunca. Ou como sempre.
The Serfsons
Como a abertura anuncia, "The Serfsons" porta os habitantes de Springfield para um cenário medieval baseado em Game of Thrones, principalmente, mas que referencia outras franquias fantásticas, como O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Nárnia e Harry Potter. E o que se vê é uma inspiradíssima sucessão de gags, com as mais variadas abordagens.
A simples adaptação dos clichês de Os Simpsons para Westeros já rende muitas piadas muito boas. Do trote para o bar do Moe entregue por corvo e consequência da vida promíscua do Krusty em uma Idade Média mágica à premissa absurda do episódio: a mãe de Margie tem um caso com o Rei da Noite — que é fissurado por "novinhas". Se os inúmeros easter eggs espalhados pelo cenário são um rico plus, o brilho de "The Serfsons" reside na característica que fez a série animada ser o que é: seu afiado humor crítico social.
Homer é retratado como um aldeão ignorante que idolatra o feudalismo e o enxerga como único meio de vida possível a despeito da exploração que lhe é imposta. Não muito diferente da crítica ao sonho americano que permeia a série desde 1989. Mas que se mostra incrivelmente relevante em 2018, haja vista as incontáveis demonstrações de ignorância política por parte do cidadão médio em todo o mundo.
Apesar da atemporalidade dessa provocação clássica de Os Simpsons, o que ilumina sua abordagem crônica é mesmo essa nova roupagem baseada em ícones da Literatura Fantástica. Exemplo disso é a alfinetada religiosa que transforma um personagem messiânico consagrado em um simples (e patético) Testemunha de Jeová. Hilário, criativo e mordaz.
Spingfield Splendor
O segundo episódio dessa estreia especial da 29ª temporada de Os Simpsons referencia outra obra, porém de nicho menor: "American Splendor", graphic novel inspirada na vida de Harvey Pekar que foi adaptada para os cinemas em 2003, com o filme Anti-Herói Americano, estrelado por Paul Giamatti. "Springfield Splendor" é um capítulo mais sombrio, mais maduro, e um tanto mais irregular apesar de ter grandes momentos.
Após uma sessão de terapia, Lisa Simpson é encorajada a colocar no papel suas frustrações cotidianas. Sem talento para o desenho, ela tem a ajuda de Margie para narrar suas histórias e assim nasce a HQ "Sad Girl" — em português, "Garota Triste". Lisa é convencida a publicar a obra, que se torna um sucesso de vendas surpreendente — ou nem tanto. Segundo Os Simpsons, o clima intelectual e cultural do mundo atual (zeitgeist) é propício para esse tipo de conteúdo. E então a série faz uma importante reflexão sobre a tristeza como produto em 2018.
Aliás, "Springfield Splendor" é cheio de boas sacadas em sua primeira metade. O episódio que gira em torno de duas personagens femininas radicaliza a inutilidade de Homer, que passa a ter que pedir comida fora quando Margie assume a posição de ilustradora em tempo integral (eis também uma crítica à sua condição de dona de casa), e Bart é, literalmente, tratado como um bicho de estimação.
Dentre as personagens reais com participações especiais, as cartunistas Marjane Satrapi, autora da premiada HQ Persépolis, que tem lições importantes sobre feminismo e empoderamento; e Alison Bechdel, inspiração para os critérios sobre se uma obra de ficção representa as mulheres de maneira não sexista. "Springfield Splendor" passa no teste com louvor.
O capítulo também retrata de maneira interessante as agruras de uma colaboração criativa (que sempre envolve muito ego), e pontua — no caso específico da 9ª Arte — de maneira sagaz o fato de escritores serem mais respeitados que os ilustradores. "Springfield Splendor" ainda contém gags inspiradas sobre o sucesso da Netflix, sobre a popularidade crescente do Unboxing e sobre a necessidade das pessoas em fazer perguntas sobre si mesmas em uma entrevista coletiva.
Então, a segunda metade de "Springfield Splendor" é tomada por uma crítica à febre contemporânea por adaptações e, principalmente, às afetações do teatro de vanguarda. O episódio ainda reserva boas piadas e a participação especial inédita do comediante Martin Short como o montador teatral Guthrie Frenel, mas a mudança é abrupta em relação à primeira parte inspirada no quadrinho underground — no geral, mais original e empolgante.