Nota: 4,5 / 5,0
Em The Good Place, o inferno não é um antro em chamas controlado por um diabo vermelho e com um rabo pontudo. “Eu escolhi a forma de um homem branco de 40 anos por um motivo. Não posso falhar mais do que isso”, diz Shawn (Marc Evan Jackson) no episódio 10 da segunda temporada. É tirando sarro da burocracia de escritórios brancos, quadrados e abarrotados de homens caucasianos engravatados que The Good Place dá um gostinho de que não quer saber de humor banal. Se você for entrar neste jogo, é melhor entrar em modo de atenção.
Mas o maior triunfo da série de Mike Schur é como ela busca a cada semana uma redenção, justamente porque não tem medo de se reinventar (ou de se ‘rebootar’). De fato, foram mais de 800 versões da mesma realidade dentro daquele universo (grande parte delas condensadas no incrível episódio “Dance Dance Resolution”, o 2.02 na Netflix mas oficialmente o 2.03), mas para além disso a segunda temporada corajosamente se desprende de tudo o que fez na primeira, indo em frente com a história para provar mais uma vez que tem uma carta escondida na manga. É sem a menor condescendência que a série coloca os personagens em julgamento, que expõe o caráter moral de cada um deles e faz o que poucas séries fazem: deixa que mudem, que evoluam, que aprendam com os erros.
Neste sentido, ela nada contra a corrente das comédias e se aproxima dos dramas de anti-heróis da terceira Era de Ouro da TV (cá estamos novamente trazendo Breaking Bad para a discussão). Mas ainda assim ela continua fazendo o oposto do que se espera — como sabiamente observa o crítico James Poniewozik, do New York Times. Enquanto Walter White (Bryan Cranston) passa por uma jornada de evolução para o mal, The Good Place permite aos seus personagens que transitem para o outro lado, que de fato busquem se tornar pessoas melhores. É raro que séries tragam esta narrativa, e mais raro ainda que sejam bem-sucedidas.
É fácil se distanciar de personagens condenados à danação eterna quando estes personagens são Walter White ou um Tony Soprano (James Gandolfini) da vida. Você pode deitar a cabeça no travesseiro e tranquilamente concluir que jamais chegaria àqueles extremos. Mas quando os fadados a uma eternidade de tristeza são pessoas com as quais é fácil se identificar — da simplicidade boba de Jason (Manny Jacinto) à indecisão catastrófica de Chidi (William Jackson Harper), todos nós temos um pouco de Eleanor (Kristen Bell) —, a narrativa é irremediavelmente internalizada. E aí reside o maior segredo de The Good Place.
Vai sem dizer que alcançar a tal da evolução não é fácil, muito menos um trabalho repentino. Por exemplo, Tahani Al-Jamil (Jameela Jamil) continua sendo a mesma pessoa auto-centrada, mas ao fim da temporada ela consegue reconhecer não apenas que é, sim, um ser humano falho, mas que há uma razão para isso que está além de sua capacidade de interferência. Nem tudo ela é capaz de mudar.
The Good Place não tenta fazer com que o “ser uma pessoa boa” seja visto como uma característica natural do ser humano, e não força aqueles personagens a serem indefinidamente uma coisa ou outra. Janet (D’Arcy Carden) é a epítome desta capacidade de mudança, já que por não ser humana ou robô, ela pode simplesmente ‘decidir’ que vai mudar em um piscar de olhos — como foi quando ela resolveu aprender a ser a Bad Janet, em contrapartida à dificuldade que sentiu no episódio anterior em dizer insultos e ser uma Janet má. É o contraponto elevado à máxima potência, e nas entrelinhas, demonstra que “se fosse assim, o mundo estaria salvo”. A sua habilidade de transição é colocada de maneira cômica e exige um bocado da atuação de Carden, que consegue ser engraçada e demonstrar emoções, mas não ser emotiva o bastante para transparecer as fraquezas que eventualmente ‘sente’.
A questão maior é que, muito embora seja difícil ser uma pessoa boa, nobre ou distinta, a frustração que atinge Eleanor no episódio final é a falta de recompensa no esforço. Não há um prêmio na linha de chegada ou um pote de ouro no fim do arco-íris. De que vale o sacrifício, então?
Aqui a série se desconstrói e se questiona mais uma vez, pois a sua premissa lá no início da primeira temporada era justamente a recompensa do pós-vida por ter sido uma pessoa boa. Isso acaba sendo uma tradição das séries de Schur, que vão naturalmente melhorando com o tempo — que atire a primeira pedra quem realmente amou a primeira temporada de Parks and Recreation. Mas The Good Place subiu rápido por este caminho, e em pouquíssimo tempo jogou o que pareciam ser todas as suas cartas na mesa. Simplesmente para mostrar que ainda tinha mais um jogo inteiro à espreita.
Durante seus 12 episódios da segunda temporada, The Good Place foi para todos os cantos, fez Michael (Ted Danson) aprender filosofia e ética, passou pelo Bad Place de verdade, pela Juíza Gen (Maya Rudolph, sensacional!), coquetéis molotov e piadas com Blake Bortles, colocou a gangue toda curtindo a vizinhança sem os demônios, trouxe Derek (Jason Mantzoukas), deu uma companhia para Mindy St. Claire (Maribeth Monroe) etc, etc, etc. E depois de uma temporada inteira esgotando histórias sem dó, sem alongar desnecessariamente um arco narrativo até ficar sem ideias, The Good Place terminou a temporada com uma nota não tão engraçada, mas mesmo assim surpreendente. O último episódio prefere focar mais nas questões filosóficas. Não temos mais aquele universo mágico, naquelas cores exageradas em um lugar onde xingamentos são proibidos e o estoque de Frozen Yogurt é infinito. Não há mais a gangue toda junta e Tahani casualmente falando sobre Paul McCartney ou Maggie Smith, e sim de volta à realidade para um novo teste. Eleanor Shellstrop está de volta à realidade (ou não está?), e o que antes havia sido o motivo de sua morte se tornou uma experiência de quase morte e um possível motivo para que questionasse a própria vida e as escolhas que fez.
A função primária deste episódio é lembrar ao público quem Eleanor era antes do início da série, e por isso ele deixa o humor de escanteio. Obviamente ainda há as piadas (e uma bela referência a Cheers), mas o capítulo está menos interessado na graça e mais interessado mesmo em mergulhar fundo nas questões que tiraram The Good Place do lugar comum. O tanto que Eleanor evoluiu nas duas temporadas está tão claro e fresco na cabeça do espectador que voltar àquela Eleanor ‘pré-morte’ é quase um delírio de tão absurdo que parece, mas é uma estratégia que se dispõe a colocar todas as aulas de filosofia moral em prática.
Afinal de contas, depois de duas temporadas provando a seres imortais que os humanos seriam hipoteticamente capazes de se transformarem em pessoas melhores durante suas vidas, The Good Place joga tudo para o alto (no melhor dos sentidos) e parte justamente para a tentativa de fazer com que os mesmos humanos evoluam de verdade.
Antes de ser a narrativa do anti-herói às avessas, The Good Place é uma comédia requintada que se baseia na quebra de expectativas que o público criou naturalmente para este subgênero no qual se encaixa (algo entre uma sitcom e uma comédia de um grupo de amigos). Quando você espera que ela se atenha a um modelo repetitivo, ela destrói tudo o que estabeleceu. Quando você julga saber exatamente para onde a história vai no final da temporada, vê o tapete sendo retirado e ela mais uma vez indo para um lugar completamente diferente.
The Good Place se distingue por não subestimar a inteligência de quem está por trás das telas, e muitas vezes instigar uma reflexão para além daqueles 20-25 minutos semanais. De fato, ela é a síntese do que a nova Era de Platina da televisão (amparada mais em comédias que em dramas) propõe, porque mostra a cada episódio para onde este gênero pode ir e nunca (ou raramente) foi.
Neste pontinho de esperança que ela dá aos personagens, há ressonância política pela capacidade de evolução do pensamento humano. Em um mundo em que The Handmaid’s Tale é quase um documentário mesmo, este tipo de olhar é mais do que bem-vindo, é necessário.
De uma certa forma, The Good Place não é a representação do que 2018 é, mas está irremediavelmente ligada a esta Era por mostrar o que poderia, ou deveria ser. Ela está fazendo uma constatação política sem ser cansativa ou repetitiva (convenhamos, mencionar Trump em um segmento cômico virou quase obrigação nos dias de hoje). E até nisso — até nisso! — esta série consegue ser engraçada e fugir do óbvio.
Talvez essa reinvenção que The Good Place insinuou para a terceira temporada seja até maior e mais ousada que a feita entre a primeira e a segunda, porque soa mais definitiva e drástica. Michael e Janet não estarão junto à gangue o tempo todo. E a gangue talvez nem mesmo será uma gangue. Mas só podemos esperar para sermos surpreendidos novamente.
Ao contrário de Shawn, essa série por enquanto só melhorou.